As minhas recordações de Bibinha Cabral

PorJosé Bruno Spencer,21 jan 2020 6:12

Quando vou ao Tarrafal de Santiago, estando na Achada Carreira ou Achada Tomáz, vendo o caminho que vai ao Curral de Baixo, lembro-me, com saudade, dos meus familiares que ali viviam, entre os quais Bibinha Cabral, madrinha da minha mãe. Curral de Baixo era um antigo povoado que dista alguns quilómetros da Vila, Mangui. As casas ali se distribuíam entre uma ribeira e uma encosta que dá acesso ao Trás os Montes.

 Facto que marcava Curral de Baixo, era o laço familiar que unia as pessoas que lá viviam. Todos tinham ligação familiar um com outro, primo, irmão, cunhado, etc. A população vivia da agricultura e pecuária. O povoado deixou de existir, nos anos 70, depois da independência, anos de seca seguidos e emigração massiva para Portugal, os emigrantes construíram casas na Vila, Mangui, para suas famílias. Aqueles que não tinhas familiares na emigração, receberam ajuda para construção de uma habitação na Vila. A pouco e pouco, Curral de Baixo foi se desfazendo, as casas abandonadas caíram ou foram demolidas.

Minha mãe, hoje morto, que Deus a tenha, emigrou para Cidade da Praia, no final dos anos 40. Mesmo estando fora, minha mãe continuo com amizade à sua família, os seus dois filhos, eu e meu irmão, hoje morto também, que Deus o tenha, íamos sempre ao Curral de Baixo. Fazíamos a visita sobretudo no período de festas, como a festa de Santo Amaro Abade. Indo sempre, desde criança, às vezes duas ou três vezes por ano, acabei por conhecer os familiares todos. Bibinha Cabral merecia sempre a minha atenção, mulher afável, sorridente, carinhosa, acolhia nos muito bem em sua casa. Lembro-me bem que vivia numa casa grande e com quintal grande. Só tinha um filho ao pé dela que se chamava Eugénio, hoje falecido. Eugénio era doente e não trabalhava. Ela tinha outros filhos que morreram e que não cheguei a conhecer. Sobre mais informação de Bibinha Cabral quem me dera, foi minha mãe. Criancinha, nunca imaginaria que tinha à minha frente, uma mulher grande da cultura caboverdiana, uma das rainhas de finançon e batuque. Foi uma pena nunca tê-la ouvido ao vivo nas suas actuações.

Bibinha Cabral vivia bem no tempo do seu marido

Minha mãe contou-me que Bibinha Cabral era casada com um emigrante caboverdiano na América, de nome José Cabral e é por causa do casamento que tomou o apelido do marido. O marido deixara a emigração e decidiu viver em Cabo Verde depois de estar casado. A emigração fizera com que o casal vivesse bem e tinha tudo. Muitas pessoas dependiam do casal, minha mãe querendo mostrar como Bibinha vivia, costumava dizer “SE ELA NÃO QUISESSE LAVAR OS PÉS, TINHA ALGUÉM EM SUA CASA QUE O PODIA FAZER”. Devemos lembrar que no período colonial, estou a falar nos anos 20, 30 e 40, havia muita pobreza em Cabo Verde, sobretudo quando faltava chuva assim, havendo alguém com rendimentos elevados, é natural que pessoas com carência aproximam da casa dele.

Outro facto marcante na vida do casal, o marido ser religioso, era Sacristão da Igreja. Dizia minha mãe quando o marido era vivo, Bibinha não cantava. É bom lembrar que Igreja Católica mais as autoridades coloniais condenavam actos culturais como batuque, finançon e mesmo tabanca. Eu me lembro que aqui na Cidade da Praia, tabanca não podia subir ao Plató e a valorização da nossa cultura se deu com a independência. Falando ainda da religiosidade do marido, minha mãe contou uma historia que passou com ele quando vinha da América para Cabo Verde, de barco. Naquele tempo não era como agora, em que há aviões com ligação com América. Os barcos levavam meses para chegar a Cabo Verde, estando no barco um padre e José Cabral, ambos passageiros, o padre teria dito se encontrasse alguém que o ajudasse, iria celebrar a missa, José Cabral sem querer dizer que sabia, respondeu que iria tentar, então o padre celebrou a missa e no final, o padre ficou muito admirado e agradeceu. Depois da celebração da missa, o padre viu que tinha alguém à altura e as relações entre ambos passaram a ser mais próximas. Para além do trabalho na Igreja, José Cabral dava aula de catequese em sua casa e minha mãe tinha sido uma das suas alunas. Ensinava com rigor e quem não estudava ou não prestasse atenção, era logo castigado, minha mãe, algumas vezes, foi castigada com palmatória.

Decadência de Bibinha com a morte do marido

A morte do marido foi terrível para Bibinha. Para sobreviver, a música foi uma das ferramentas que utilizou para seu ganha pão. A pobreza atingiu-a tanto que se viu obrigada a desfazer dos bens que tinha em casa. A casa dela era única coberta com telha em Curral Baixo, tirou a telha, vendeu-a e cobriu a sua habitação com colmo. A história da nossa mulher de cultura faz-me lembrar a história de fome na Ilha do Fogo que li em que alguém chegou a trocar cada telha da sua casa por uma bolacha.

Minha mãe me contou quando havia festa como casamento, Bibinha era sempre convidada. Passou algo interessante numa dessas festas. Ela tinha de pagar a chamada renda ao morgado pelo terreno agrícola em que trabalhava. Nesta festa havia pessoas de vários estratos sócias, alguns com dinheiro e muitos bens e outros com menos e apelidados “REMEDIADO”. Bibinha na sua música, financon, cantava a cada um dos presentes, enaltecendo as suas qualidades físicas e morais. Começou primeiro com os que tinham muito dinheiro e terras, terminava um e lhe dava dinheiro, passava para outro, terminado aos que tinham posses, mentalmente fez as contas e viu que tinha dinheiro suficiente para pagar ao morgado, não necessitando de dar ao mesmo os frutos colhidos do ano agrícola como milho e feijão. Depois chegou agora a vez dos “REMEDIADOS” e todos foram também simpáticos com cantadeira.

Curral de Baixo inspirou BiBinha Cabral

Dos documentos que eu li, fala-se que Bibinha era de Tras-os Montes e começou aprender a cantar Batuk e Financon com a idade entre dez e catorze anos. Não pondo de lado a história da sua infância, certo é que Curral de Baixo era um local de muita festa. Minha mãe me dissera como na Vila, Mangui, para se organizar a festa era necessário licença das autoridades, as pessoas recorriam ao Curral de Baixo onde não se exigia a licença por estar distante da Vila. Havia muita festas como bailes acompanhados ou por gaita ou por cavaquinho. Curral de Baixo era um local tão procurado pelos festeiros que num dia se encontraram sete tocadores de gaita e todos queriam tocar. Havia também festa da tabanca nessa localidade. Todo esse ambiente cultural decerto teria influenciado também a Bibinha Cabral.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 946 de 15 de Janeiro de 2020. 

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Autoria:José Bruno Spencer,21 jan 2020 6:12

Editado porSara Almeida  em  21 jan 2020 6:14

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