Devo confessar, que há muito que planeava um encontro com este meu companheiro de aventuras «radiofónicas» que vivemos juntos a partir de Setembro de 1974 em Bissau. O motivo era uma entrevista sobre a chegada da Rádio Libertação em Bissau e sua progressiva transformação em Rádio Difusão Nacional da Guiné Bissau. Éramos amigos desde os tempos do liceu em S. Vicente, Faka tinha vindo de Conacri naqueles dias, encontrei-o ali perto do Clube UDIB, ele reconheceu-me, foi um grande abraço e muita conversa. Foi pelas suas mãos que entro na Rádio Bissau e recomeça a minha carreira profissional. Quem não sente, não é filho de boa gente, por isso: Obrigado caro amigo!
Bem, as aventuras de Bissau em 1974/75 estou a contá-las num livro em preparação… Com a partida do Faka, fui obrigado a acrescentar no tal livro uma nota de rodapé com o seu falecimento, mas… falta-me a data de nascimento! Recorro então ao Google, verifico que naquele momento, ainda foi publicada qualquer notícia sobre o falecimento deste amigo nem encontro qualquer nota biográfica! Surpreende-me, então ter encontrado no “mindelosempre.blogspot.com” o seguinte post: “ [1519] Correio de Cabo Verde (São Vicente, 2) – O Nicolau Tolentino que veio de Bissau para São Vicente!» Leio no texto que este personagem “veio de Bissau para São Vicente (talvez em regresso definitivo), onde estaria estabelecido com negócio cujo conteúdo desconhecemos (aparelhagem electrodoméstica, talvez), por volta de 1941. E ainda gastava os envelopes que antes utilizara na Guiné, riscando o «Bissau – Guiné Portuguesa – A.O. (África Ocidental)», substituindo esses topónimos por “São Vicente (Cabo Verde) A.O. (…) Honra seja feita então ao Joaquim Nicolau Tolentino que contribuiu para a modernidade da cidade do Monte Cara.” Bem, devo esclarecer o leitor que este post é de cariz filatélico e tudo gira à volta da publicação do envelope de uma “(…) carta para a Zenith Radio Corporation, em Chicago, a fábrica que inventou maravilhosos rádios que mais pareciam torradeiras e a rádio FM, hoje prestes a cair em desuso, devido ao digital.” Presume-se que a carta poderia estar relacionada com a importação de aparelhos receptores daquela marca! O dono daquele blog e autor da descoberta, deste raríssimo/histórico envelope é o amigo e também colega dos tempos do liceu em S. Vicente, Joaquim Saial, na época (inícios dos anos de 1960) um miúdo que veio da «metrópole» com o pai 2.º sargento da marinha, vivia com a família na Capitania, no emblemático edifício mindelense que é uma réplica da torre de Belém de Lisboa. O Joaquim Saial, que logo, teve o mindelense nominho Jack, bebeu água do Madeiral e Vascona, transformou-se num crioulo de sete costados «dôde na São Cente e Cabo Verde» a ponto de anos e anos passados, desde que deixou a ilha, continua sentir e a escrever sobre a sua terra de adopção! E aqui, entra o comentário que o próprio Saial fez ao seu próprio post: “Nicolaus Tolentinos eram (e devem continuar a ser) às carradas, em Cabo Verde, talvez por ser o santo padroeiro da freguesia com esse nome, em Santa Catarina, Santiago. O meu comandante de castelo na MP (Mocidade Portuguesa), por exemplo, chamava-se assim.” Quando li isso, relembrei que o Faka, Nicolau Tolentino, fora comandante de castelo, naqueles tempos, quando sábados à tarde, éramos obrigados a aprender a marchar e desfilar todos fardados… a instrução decorria ali perto do liceu, no quintal da Académica que ocupa o espaço lateral da rua que vai para o hospital (velho).
Intrigado e curioso com esta coincidência, entro em contacto com a Gunga (Aldegundes) Tolentino irmã do Faka minha colega do jornalismo, que trabalhou na Voz da América e por lá ficou. Envio então a seguinte mensagem: “ (…) para esclarecer se Joaquim Nicolau Tolentino que viveu em S. Vicente e vendia rádios, era vosso parente!” Eis a resposta da Gunga: “Meu pai, nosso pai, Joaquim Nicolau Tolentino nascido em Chã de Cemitério e que depois se instalou na Rua de Serra (em Mindelo) onde havia o único negócio com a placa de escarlate azul com letras brancas: «Electrónica Joaquim Nicolau Tolentino»! Formado com as 14 disciplinas do Liceu de São Vicente, falante de todas as línguas arcaicas incluindo o Grego e o Latim. Fez o Curso de electrónica por correspondência com um instituto na Inglaterra, fez o curso de solicitador por correspondência com uma escola em Portugal. Assim lá em casa havia, o escritório de advocacia e a oficina de electrónica. Construiu as primeiras rádios de galena. Era o único Rádio Amador do seu tempo (nascido em 1910). Deves conhecê-lo da revista Claridade! Há tanto mais para falar do paizinho!” Surpreendido com esta resposta, faço mais uma, dever da profissão! “Ele esteve na Guiné? Tinha lá negócio?” Gunga reponde entusiasmada: “Esteve sim! Tinha negócios na Guiné. Isso foi antes de eu nascer!” Revela então que o pai teve uma primeira mulher na Guiné, com quem “Ele teve três filhas (…) antes de casar com a minha mãe!” No final desta conversa, envio as fotos do tal envelope… a minha colega reage assim: “Oh Carlos!!! Que emoção ver a caligrafia do meu pai!” Note-se, Joaquim (Nicolau) Tolentino figura como editor nos números 8 e 9 da revista Claridade.
Não há dúvida, trata-se do pai do Faka! Tal pai, tal filho! Faka, Nicolau Totentino, foi desde rapazinho em Mindelo, conhecido pelas suas engenhocas, construía rádios de galena, para o meninos escutarem Rádio Clube e Rádio Barlavento. Aos 16 anos emigrou para a Holanda, o destino de muita rapaziada que não podia singrar para um curso médio ou superior em Lisboa… Na época, os concursos para o funcionalismo eram super-exigentes! Da Holanda, partiu para a Guiné-Conakry em 1970 para se juntar à luta de libertação nacional durante a qual esteve sempre ligado à manutenção dos emissores e equipamento de estúdio da Rádio Libertação. Em Setembro de 1974 com o final da guerra, foi para Bissau, onde foi o primeiro Director do Centro Emissor de Nhacra. Faka foi sempre incansável na reparação das constantes avarias deste potente emissor de 100 KW! Regressou à Praia, por ocasião da Independência de Cabo Verde, passou a trabalhar nos CTT, mais tarde CVTelecom. Formou-se em Informática nos Estados Unidos, regressa a Cabo Verde em meados dos anos de 1980. Foi presidente do INADI (Instituto Nacional de Desenvolvimento da Informática), um antepassado do NOSI. Nicolau Tolentino, Faka, foi sempre um inovador, um homem com visão do futuro, muitas vezes incompreendido pela ousadia das suas ideias, por isso mesmo, muitas vezes condenado ao ostracismo. Viveu os últimos anos da sua vida isolado e desiludido com muitas injustiças, absorto nas suas invenções e engenhocas… Paz à tua alma, caro amigo!
A terminar devo concluir que o mundo é pequeno! As «estórias de dias-há» encaixam-se com as «estórias» de hoje, personagens de ontem e de hoje interligam várias realidades que muitos pensam estanques mas que se interpenetram e se complementam: o passado colonial, a luta de libertação, a vida pós Independência.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 968 de 17 de Junho de 2020.