O fim do mundo que não aconteceu

PorEurídice Monteiro,4 jan 2021 7:11

No meio de tanto horror e medo, vimos pessoas a se triunfarem de uma forma incrível. A enorme capacidade de resistência, adaptação, resiliência e perseverança são demonstrativos da inesgotável capacidade humana de enfrentar o medo e vencer desafios inimagináveis.

Talvez... Para ser franca, nunca pensei em começar uma crónica de imprensa com uma palavra que, sozinha, assim tão triste e desalmadamente, manifesta tanta incerteza. É, na verdade, uma incerteza enorme que caracteriza o tempo presente e não tão-somente o estado da alma de um ou outro vivente deste mundo. De facto, parece que é esse o sentimento sombrio que se generalizou durante o ano 2020, que, finalmente, está prestes a findar. Que vá para o raio que o parta! Abrenúncio, abrenúncio!

Depois desta esconjuração, voltemos agora ao que realmente interessa falar por assim dizer. Vendo bem, há muitas ilações a se tirar deste malledito ano 2020. É que, se antes desta pandemia do novo coronavírus que abateu terrivelmente sobre o ano 2020, não pouca gente se achava detentora das certezas absolutas do mundo da vida, hoje vivemos enfadados entre tantas dúvidas e hesitações da existência, com angústias e desassossegos, medo e ansiedade, o que comprova, em última instância, que somos humanos e temos os nossos limites e fraquezas.

Com efeito, então, agora sim, multiplicamos as conjecturas, as suposições e as alegorias. E isso não acontece apenas no plano individual da vida de cada qual, mas igualmente no domínio público, ao nível das grandes decisões da esfera estatal. De tal modo que, assim como no plano estritamente pessoal todos estão com a vida na balança e incertezas imensas quanto ao dia de amanhã, também no domínio público já nenhum governo local ou central se presume titular das certezas no que virá, nem o controle sobre as situações e as estratégias mais eficazes para se driblar a calamidade propiciada pela pandemia do ano 2020.

Vendo em retrospectiva, pode-se dizer que 2020 é um ano que mais parece cumprir as profecias do ano 2000. É essa a sensação com a qual ficamos diante de tantas perdas e abalos deste ano. Que, portanto, parecem cumprir as profecias do fim dos tempos. Se tudo que aconteceu este ano tivesse ocorrido há 20 anos atrás, durante o ano inaugural da transição para o século XXI e o terceiro milénio, ninguém deixaria de acreditar que estaríamos a enfrentar as profecias devastadoras do fim do mundo. Claro que me lembro bem da passagem do ano 1999 para 2000, quando os jovens de 17 e 18 anos da minha geração rogávamos a Deus e a todos os anjos celestes para que não deixassem o mundo se acabar assim tão de repente, porque éramos muito novos para transitarmos desta para outra dimensão.

No final do ano 1999, tanta era a nossa incerteza sobre o que iria acontecer quando então o ano 2000 chegasse de rompante, o que, nas nossas cabeças, de certo, seria anunciado por bombardeamentos, relâmpagos, trovoadas e dilúvio do apocalipse. Então, por causa de tantas incertezas, as nossas cabeças e corações estavam em alvoroço, de tal maneira que ensaiámos todas as possibilidades e até houve quem não se coibisse de realizar alguma fantasia mais especial e cumprisse desejos de última hora antes que o mundo finalmente se acabasse com as badaladas de chegada do ano 2000 e, portanto, do novo milénio. Mas, o mundo não acabou naquela altura, nem sucedeu o tal bug do ano 2000 nas sociedades de informação. Tudo continuou na mesma. Os bancos continuaram a funcionar, as hortas a produzir, os aviões a voar, os comboios e hiaces a circular, os peixes a nadar e assim por diante.

Aqui na nossa terrinha tão querida, pequenininha e sabi pa fronta, quando acordámos no outro dia, sentimos apenas aquela sensação de muita fome, sede e dor de cabeça lá no fundo do crânio. Tomámos um melhoral ou aspirina. Ficámos até com olhares incrédulos, porque, no final das contas, o mundo não acabou. Ainda bem que, por medo do que iria entretanto suceder após a morte que portanto viria com o fim do mundo, acabámos por nos conter um pouco e não excedemos em demasia nas celebrações da transição de ano. Enfim, como se denota, o fim do mundo não aconteceu. Pelo que ainda continuámos por cá a lutar contra as intempéries e as provações da existência humana. Isso mesmo: ainda estamos cá. Actualmente, o que nos obrigou a mais um teste de resiliência foi esta pandemia do novo coronavírus.

Entretanto, no meio de tanto horror e medo, vimos pessoas a se triunfarem de uma forma incrível. A enorme capacidade de resistência, adaptação, resiliência e perseverança são demonstrativos da inesgotável capacidade humana de enfrentar o medo e vencer desafios inimagináveis. Nelson Mandela já dizia que «tudo parece impossível até que seja feito.» Parecia que íamos afundar, mas cá estamos nós a enfrentar o mal, a superar as dificuldades e a planear a vida para o ano 2021. O próximo ano será, quero crer, o ano de todas as realizações. Depois da lástima que foi este ano, todos nós cremos e oramos para que 2021 seja de facto o ano das nossas vidas. É esse o desejo, que de modo individual e colectivo, será bradado aos ventos no réveillon. Boas festas!

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 996 de 30 de Dezembro de 2020. 

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Autoria:Eurídice Monteiro,4 jan 2021 7:11

Editado porAndre Amaral  em  4 jan 2021 7:11

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