A expressão não é bíblica, mas ferramenta política usada segundo conveniências de partidos ou grupos envolvidos. O crescente número global de evangélicos pode, na realidade, alterar resultados eleitorais. Cientes do poder deste recurso, não faltam até evangélicos dispostos a ostentá-lo e, Deus nos perdoe, a negociá-lo.
Sou evangélico. Mas as minhas convicções, e nunca o rótulo que me queiram dar, definem o meu voto. A ninguém pertence o direito a voto moldurado. Recentemente, ampliou-se um ruído preocupante: o tropel que ameaça arrebanhar uma mentalidade tendente a encurralar cristãos, reduzi-los a uma só garganta de opinião e a voto aparentemente negociável por quem pareça liderá-los. Rotulada há tempos como “Maioria Silenciosa”, advogou a tomada dum megafone teológico com volume de sobra, milhões de votos, para eleger ou derrotar governantes.
Por mais piedosos ou até bíblicos que pareçam os argumentos usados para justificar a existência dessa entidade votante, falta-lhe o carimbo sagrado. Interpretações denominações ou posturas convenientemente peneiradas da Bíblia não devem criar normas fanáticas ou catecismos opinativos. Lembremos aqui o próprio diabo citando Escrituras Sagradas, a quando da tentação de Jesus. Mereceu-lhe isso um repúdio enérgico e instantâneo (Mateus 4:10). Mais tarde, o Senhor viria a ser tentado, desta vez por líderes religiosos com disfarçada agenda política. Mostraram ao Senhor uma moeda com efígie de opressor estrangeiro, símbolo dum imposto humilhante à nação. Pagar ou não pagar? Jesus assim os surpreendeu: “A César o que é de César, a Deus o que é de Deus.” (Mateus 22:21). Jesus Cristo nunca temeu a oposição, mas jamais tolera manobras oportunistas em escolhas vitais.
No Brasil chamam “santinhos” a impressos de campanha eleitoral distribuídos em massa nas vias públicas. Os papelinhos rejeitados cobrem o chão dum colorido festivo, em vésperas de eleições. Ostentam fotos de candidatos e exaltam competências. Nesses folhetos, todo o mundo é “legal”, sem mácula, garante a mensagem condensada ao lado de dígito atribuído ao candidato. Perfeito ninguém é, mas a humildade e a consciência de limitações, aliadas a experiente competência, caracterizam a pessoa íntegra a ser considerada para cargos de liderança e serviço, seja onde for.
Fala-se hoje num futuro dominado por robôs produzidos em massa para funções repetitivas, até cirurgias melindrosas. Na Criação, Deus preferiu a diversidade e o individualismo responsável. Nunca houve um molde comum para cada espécie. Distinguem a humanidade impressões digitais únicas. Até folhas e ocasionais gotas de água e flocos de neve têm características diferenciáveis.
O maior grito democrático de todos tempos foi pronunciado por um governante frustrado pelo sincretismo dum povo confuso ante opções político-religiosas do momento. O líder de então, Josué, repudiou o recurso a comando ditatorial, ou à pressão militar. Absteve-se mesmo de ecoar o saudosismo do ontem tribal. Respeitando o bom senso do povo, ele preferiu bradar: “Escolhei hoje!” (Josué 24:15). A realidade vivida hoje norteia o voto livre quanto ao amanhã aspirado.
O livre arbítrio, carimbo democrático de Deus em cada criatura humana, continua sendo parte da nossa estrutura molecular. Esse tal “voto evangélico” não é nomenclatura do céu, nem será por ele sancionado. No rebanho da Igreja nem todas as ovelhas preferem sempre o mesmo curral... ou até mesmo o confinamento dum curral! Jesus contou a parábola da ovelha que ousou fugir, expondo-se a incógnitas do outro lado da cancela. Que fez o divino Pastor? Em vez de condenar ao matadouro essa ovelha rebelde, vadia e ingrata, saiu a procurá-la. A busca foi penosa, mas bem-sucedida. Jubiloso, o Senhor quis reintegrar a perdida na comunidade que ela desertara (Lucas 15:6). Haverá sempre, no mundo cristão, espaço para os que pensam ou votam de forma diferente, abraçam causas que a consciência lhes dita meritosas. No ensino de Jesus Cristo aprendemos a repudiar manipulações da verdade, polícias ditatoriais, cruzadas sangrentas, batismos forçados, degredos e colónias penais para dissidentes, centros de reeducação política. Protestantes já morreram em massa por firmeza de fé que não desiste, nem se vende ou retrata perante exclusões ou violência ditatorial.
Um cuidado prioritário é evitar que não nos seduzam promessas exageradas, aplausos lisonjeiros, privilégios, medalhas, condecorações imerecidas ou promoções estratégicas. Em eleições ordeiras um partido sai vencedor, após o apuramento democrático de votos legítimos. Quer ganharmos ou perdermos, assiste a todos o civismo de reconhecer e apoiar a vontade do povo, para harmonia e prosperidade da nação. A guerra entre partidos estrangula prioridades, esbanja recursos, fragmenta e enfraquece a sociedade. Quem não tente aprender com a derrota e desrespeite o vencedor, não merece celebrar qualquer vitória.
Que nosso voto jamais beneficie candidatos corruptos que prometam legislar a favor duma só questão polarizante, seja ela o aborto, o casamento homossexual, bloquear fronteiras ou explorar nova fonte energética. Há também os que singularizam o combate ao racismo, a aquisição e porte de armas letais, o tráfico humano, a defesa ambiental, a distribuição global de recursos, deste a distribuição de água à de remédios e vacinas contra vírus pandémicos. Exigir ou mesmo esperar que o voto de outrem seja igualzinho ao nosso é atentado à liberdade e direito do eleitor.
Como evangélicos, descrentes ou praticantes de outros credos, respeitemos sempre alguém íntegro e competente que honre e sirva o povo. O nosso voto é qual mão privada que escreve na parede pública o “peso” dum candidato achado ou não “em falta” (Daniel 5:27). Espelhe esse voto a coragem também exemplificada no Novo Testamento: quando um rei, Herodes, intenta matar para preservar o poder, “eleitores” sábios, à busca de um novo Rei, escolhem “outro caminho”. Assim fizeram, mesmo sem qualquer “estrela” a abrilhantar a virada ditada por consciência iluminada (Mateus 2:12).
Fica aqui despretensioso alerta à massificação do “voto evangélico”. Cidadãos responsáveis, continuaremos também cientes do risco e perigo de não votar. Se tivermos o privilégio de ir às urnas, que seja para a livre expressão de cidadania devotada ao bem público. Esta postura não promove agendas doutrinárias nem defende ambições egoístas. A sede de poder cria, por vezes e em períodos eleitorais, seja onde for, lobos convenientemente dissimulados de ovelhas. Uivam-se então promessas de oferecer o Sol, mas que acabam por nos dar, quase sempre, um pauzinho de fósforo fumegante. Esses candidatos, sim, são indignos do “voto evangélico” ou de qualquer pessoa responsável.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 999 de 20 de Janeiro de 2021.