Coragem para vencer na vida

PorEurídice Monteiro,1 fev 2021 7:26

É neste momento que, por causa dos efeitos nefastos desta crise pandémica sem precedentes no nosso tempo, somos dados a matutar profundamente sobre a natureza humana.

Este é, ao fim e ao cabo, um momento singular, que requer muita audácia. A coragem impulsiona os acontecimentos. Na verdade, quem não ousa dar um passo, quem hesita bastante ou quem permanece sempre medroso no mesmo lugar só dará conta do que perdeu com o passar do tempo. E o tempo não perdoa. O tempo é, aliás, o pior dos piores justiceiros. O tempo, visto de todos os ângulos, o que não permite nunca é a regressão, o voltar atrás. É, portanto, impossível voltar atrás no tempo. O tempo é demasiado casmurro. O tempo segue em frente, sem se importar com nada, nem com ninguém. O tempo vai, de vento em popa, contra tudo e contra todos. O tempo não ouve, nem aceita penitência.

Há aquele ditado popular cabo-verdiano que diz o seguinte: «si N sabeba, fika lá di pa tras.» Isto significa, em última instância, que não passa de uma mera cogitação, contudo deveras inconsequente, o corriqueiro acto reflexivo, meditativo, lamecha, de pranto, eivado de algum «ai, se pudéssemos voltar atrás no tempo.» É certo que, na falta de coragem para agir, porém, muita gente condena a ousadia, alegando todavia que também podemos nos arrepender amargamente de algumas decisões, sobretudo das decisões mais intempestivas. As pessoas, os reaccionários, que se tendem a esse tipo de ponderação, pensamento negativista e cálculos isotéricos fazem parte de uma categoria de gente que um vizinho meu de longa data classifica como os que só saberão do adoçado sabor da vitória pela experiência dos outros.

«Ai como dói fazer parte da vida como figurante e não como actor da própria história», dizia outro vizinho que, depois de uma eternidade a hesitar e a lamentar, viu o tempo escapar-lhe na ponta dos dedos, sem nunca ter tomado uma decisão corajosa (decisão de homem, como ele dizia), sem nunca ter-se ausentado da tapada da sua casa na ourela do mar. A sonhada oportunidade para uma existência melhor, que se via para lá do azul-marinho estendendo-se à vista, nunca lhe foi acessível, porque não quis tentar. Nem uma única vez sequer. Teve medo de tentar, de dar um passo além. Ficou no estado contemplativo, resignado na sua condição de aldeão. Um aldeão com meio palmo de terra para plantar e outro para semear, acreditando que nosso senhor, que é Deus misericordioso, havia de mandar chuva para molhar a terra seca e, dela, fazer brotar frutos do campo.

O primeiro vizinho, que referi aqui, é diferente. Pensa de maneira diferente. Para além de pensar diferente, age também de maneira diferente. Inquieto. Anda sempre de um lado para o outro à procura de uma solução para a vida que tem que melhorar de alguma forma. Homem de tantas viagens para o sul e coleccionador de sonhos frustrados, dizia, ainda assim, que o pior arrependimento da sua já longa e sacrificada vida foi por não ter feito o que deveria ter feito na altura certa e não por ter tomado uma decisão que deu errada. Citando como um exemplo amargo, dizia o quanto se arrependia por nunca ter-se casado, porque se achava livre demais para permanecer com uma mulher por toda a vida, e hoje lamenta muito ter deixado escapar então a Joaninha da sua vida, a dona dos sonhos inconfessáveis. Ela, a Joaninha, casou com outro. Com outro moço da época, mais bem-feito e, quiçá, mais sonhador. Lamenta muito que devia ter-se casado, ainda que viesse a se arrepender mais tarde, que a amada viesse a causá-lo algum desgosto ou ele viesse a trocá-la por outra mais rascôa. «Não, nunca trocaria Joaninha por outra.» Mas, por soberbia, recusou a mão e os pés da Joaninha. Também a vida fez com que nunca soubesse o sabor de estar casado, passar dias e noites com a encantadora Joaninha dos seus sonhos de menino e moço.

De uma maneira ou outra, corta a alma ouvir falar de decisões que não se concretizaram por não terem sido tomadas a tempo. Outrossim, alegra a alma ouvir falar da ousadia de quem em tempo certo soube tomar uma decisão corajosa. A coragem é o que faz mover a história. Há momentos em que devemos agir, sem hesitar. Este é o momento de agir. Ave-maria, hoje, somente me ocorre exemplos de vizinhos de longa dada, que me enchem a vida com significados intemporais. Lembro-me de um outro vizinho, que também agora anda na casa dos setenta e tal anos de idade, que passa a vida dizendo recorrentemente que não devemos ficar na ponta da praça, com os braços estendidos à espera do regresso da lancha do mar. «Devemos ir à pesca. Isso sim é trabalho digno. Vale a pena lutar e ganhar a vida com o nosso próprio suor e sangue.»

É isso aí, meus caros. Cabe assumir os desafios deste novo ano com ânimo e agir em consequência. Não podemos ficar eternamente de braços cruzados a ver o tempo passar. Façamos, sim, o que temos de fazer hoje, porque amanhã pode ser tarde demais. A vida é, sem dúvida, um mistério, mas torna-se mais prazerosa quando somos nós a traçar o nosso próprio destino.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1000 de 27 de Janeiro de 2021. 

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Autoria:Eurídice Monteiro,1 fev 2021 7:26

Editado porAndre Amaral  em  1 fev 2021 7:26

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