Devido à pandemia do novo coronavírus e, portanto, por questões sanitárias, este ano não vamos nem celebrar o Carnaval, nem saborear a Cinza. A suspensão da comemoração tanto de um, como do outro, tem suscitado alguma apreensão entre nós, visto que já se cristalizou a ideia e o dualismo insular de que, se é Carnaval é para a folia, principalmente na zona portuária da ilha do Monte Cara, e o dia da Cinza é para a degustação, de modo particular dos sabores do mar e do campo no interior de Santiago. Este ano não há festa. Os dias por que passamos têm exigido bastante contenção para a não propagação da pandemia.
De acordo com a prática cristã, depois do usualmente animado ritmo festivo do Rei Momo (sarcástico e delirante senhor do carnaval e da folia) e da Quarta-Feira de Cinzas, inicia o conhecido tempo quaresmal, conhecido como quadragésima dies antes da Páscoa. Já rememorei, noutro lugar, que a palavra carnevale (carnaval) deriva, etimologicamente, de duas expressões – «carne, vale!» – que literalmente significa «adeus, carne!». Com efeito, no mundo cristão, o carnaval, actualmente popularizado um pouco por toda a parte, é efectivamente concebido como uma comemoração profana do adeus à carne. Por sua vez, com a Quarta-Feira de Cinzas, começam os quarenta dias de quaresma, dias esses que são de orações, jejum, penitência, privações e abstinência de carne. Entra-se, assim, no tempo quaresmal, de fortalecimento da paixão de Cristo, da fé e da esperança. Até as missas, que são muito participadas pela comunidade, são menos celebrativas, sem flores no altar nem outros enfeites, sem glória a Deus nem aleluia, sem os sinos da igreja bradando aos céus nem palmas de ovação, sem grandes louvações nem as outras aclamações. É um tempo de contenção total.
Ouvi dizer, já li algures e sinto profundamente que a quaresma é um tempo sagrado. Com sol ameno. Não tem aquele sol rachado. O sol é calmo e apaziguado, mesmo no litoral árido das ilhas. A terra bufa-bufa é macia e morna, ainda não tão escaldante como na época mais quente. A quaresma é um tempo de reflexão. De meditação. De penitência. De jejum. De partilha. De caridade. De compaixão.
A conhecida como Semana Santa é a última semana da quaresma, incluindo a Quinta-Feira Santa (com a celebração da Última Ceia e do dia em que Jesus lavou os pés aos seus discípulos) e a Sexta-Feira da Paixão (a última sexta-feira antes do Domingo de Páscoa). Trata-se de uma festa pagã, mas de natureza marcadamente católica, evocativa do mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Como reza o Novo Testamento, Nosso Senhor teria ressuscitado três dias depois da sua crucificação e morte no Calvário. Se a festa da Cinza é comemorada com algum jejum e abstinência da carne, já no caso da Páscoa é celebrada com alegria e boa carne, preferencialmente cabrito e vitela. Afinal, somos cristãos!
Ainda em relação à quaresma, fala-se de três obras quaresmais que incluem: contra a concupiscência dos olhos (cobiça, ganância, luxuria), praticar a esmola (doação, partilha, despreendimento dos bens materiais, desfazer de coisas); contra a soberba da vida (ostentação, exibição, auto-suficiência, prepotência), praticar a oração (meditação, reflexão, contemplação); e contra a concupiscência da carne, praticar o jejum (contenção).
Neste tempo pandémico, torna-se bastante significante a ponderação sobre estas questões. Enquanto cristãos praticantes ou não, o que esta pandemia vem nos pôr em evidência é a ideia de que não somos seres isolados. Vivemos em sociedade e somos interdependentes. Daí que o tempo quaresmal requer a prática de obras que elevam a alma humana. Para cada uma das ditas obras quaresmais existem advertências: «quando dás esmola, não toques a trombeta como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas suas, para serem louvados pelos homens...» (Mateus 6:2); «quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens» (Mateus 6:3); «quando jejuardes, não tomeis um ar triste como os hipócritas, que mostram um semblante abatido para manifestar aos homens que jejuam...» (Mateus 6:16).
Depois do exposto, apraz-me dizer que mais não tenho a acrescentar. Só me resta, então, desejar a todos um bom carnaval sem muito carnaval, uma boa cinza com muita contenção na degustação do mel-de-cana (porque tudo o que é doce demais enfastia e até pode criar lombriga, o que é mau neste tempo pandémico), também alguma prudência com o peixe seco (minha avó dizia que se deve retirar bem o sal que pode fazer mal à saúde) e, depois de tanta comilância na cinza, desejo, de igual modo, uma boa época quaresmal que faz bem à alma alguma meditação sobre a razão da nossa passagem por este mundo. E agora que estamos em tempo de pandemia tanto mais temos que repensar os nossos actos e omissões. Quem sabe numa dessas crónicas poderei ainda voltar a teclar nessas teclas com as leituras quaresmais, de que gosto muito, aquelas coisas sobre as tentações de Cristo, outras sobre a Samaritana e coisas afins. Daqui a pouco vão-me perguntar onde ando a aprender tantas coisas sobre a igreja. Antes de mais, deixam-me vos dizer que sou filha de Deus, boa cristã, temente a Deus. Rabelada também, mas isso já é outra questão. Fiquem bem, porque vou passar uns dias no campo, na ribeira da minha infância, a destilar (pila cana) no trapiche eléctrico que ora a modernidade trouxe para repousar os bois da nossa tradição. Somente posso fazer menção ao mel-de-cana, porque mais o presidente da república não fica contente. Fui.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1003 de 17 de Fevereiro de 2021.