Um domingo silencioso

PorDina Salústio,15 mar 2021 7:09

Como por milagre esquecem-se as velhas dores, as batalhas perdidas e os desprazeres vividos, as doenças antigas, como se a tristeza tivesse começado num dia absolutamente identificado, um ano antes.

Um domingo longo, silencioso e aborrecido. Procuro na TV qualquer coisa que não tenha de levar a sério e que nem me dou ao trabalho de definir. Se der, muito bem, se não der, mudo de canal ou fecho. Refilo, o mundo refila. A roupa que não se ajusta ao corpo, o pão salgado. As minhas ridículas convenções domingueiras em devaneio pela sala. Um ano com essa pandemia a dominar o mundo e as gentes, sem vontade própria, sem poderem passear, viajar, andar pela festividade dos dias. Quase um ano sem aniversários e festas populares. Sem gargalhadas em grupo, sem o estalar de rolhas, sem abraços desabridos, sem festas. Quase um ano com trabalho incerto ou em segundo plano. Quase um ano em que as crianças resmungam e se fecham. Maldizemos a vida. Como por milagre esquecem-se as velhas dores, as batalhas perdidas e os desprazeres vividos, as doenças antigas, como se a tristeza tivesse começado num dia absolutamente identificado, um ano antes.

Com desinteresse vejo-me parada num programa de entretenimento “Voice kids”.

Antes de fazer o zapping dou de caras com uma menina, uma concorrente. Já tinha passado umas três vezes pelo programa, na busca de algo indefinido e três vezes tinha recuado, mas agora parei. O que me terá feito parar foi a postura da adolescente num palco enorme, vazio, quase cruel pela nudez. Doze anos. Quando a apresentadora lhe pediu para contar a sua história surpreendi-me a ouvi-la falar da história de outros, porque não é normal descentrar o “eu” nessa idade. Falou, sobretudo da irmã de dois anos que ajudava a cuidar, como se ela fosse o seu prolongamento. Falou dos pais. A apresentadora ajudou-a a ir ao encontro de si mesma, mas parece que algo lhe doía, embora uma grande certeza teimasse em brilhar para além do foco. Estudante, queria ser médica. Talvez ortopedista, talvez oftalmologista. Ou as duas coisas. Uma grande certeza nas especialidades. A par da decisão profissional também queria ser cantora. Tantos sonhos. Quando pensei que o currículo estaria completo os holofotes deslizaram pelo palco enorme e destacou o corpo inteiro.

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Então ela lembrou-se de acrescentar à sua história algo, pela voz, uma banalidade.

– “Nasci com uma doença rara. Se calhar muitas doenças raras que me fazem dar quedas e fazer fraturas. Tenho a doença dos ossos de vidro, conhece? que me fazem quebrar os ossos, os dentes e os dedos; que me fazem ver mal”. Parou e reagiu: “Tudo doi. É a minha história. Só isso”. – Fez um esgar que pretendia um sorriso e que mostrava resquícios das doenças. Mudou o peso do corpo de uma perninha para a outra. As dores pelo longo tempo em pé, só ela as soube. Ajeitou os óculos que queriam chorar. Olhou para a irmã e cantou.

 Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1006 de 10 de Março de 2021.

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Autoria:Dina Salústio,15 mar 2021 7:09

Editado porAndre Amaral  em  15 mar 2021 7:09

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