Uma pequena historia para se poder entender o sentido e o alcance desta afirmação:
Nos idos de 1995, por ocasião das festas de São João na maravilhosa Ilha, durante uns 4 ou 5 dias tive a oportunidade e o privilegio de conviver, de dialogar, de ouvir o Dr. Gualberto do Rosário. Fiquei impressionado com a ampla memória e a variedade de faculdades de conhecimentos universais, de imaginação, criatividade, enfim de um dom de contar estórias.
Fiquei a conhecer São Nicolau como uma lha repleta de estórias que nos levam para esse mundo do fantástico ou maravilhoso, base para os temários de obras anteriores do Gualberto. Percebi o porquê que os romances anteriores de Gualberto do Rosário enquadram-se na corrente do realismo fantástico. Género esse com sucesso mundial praticado com mestria por escritores sul-americanos como Gabriel García Márques, Miguel Ángel Astúrias, Alejo Carpentier, Juan Rulfo, entre outros grandes escritores de sucesso a nível internacional. Em Cabo Verde, temos o nosso prémio Camões Germano Almeida.
Na ocasião, em 1995. Não tive dúvidas. E vaticinei: eu lembro me perfeitamente de ter dito ao Gualberto: se escreveres essas coisas e com um bom estilo, vais ser um grande romancista.
Consolidação do nome de Gualberto do Rosário no cenário do Romance em Cabo Verde
Eis que hoje, passados mais de 20 anos, estou aqui para confirmar que a previsão estava correcta. Aliás, outros críticos literários, com nome na praça, já reconheceram o grande valor literário da obra romanesca de Gualberto do Rosário.
Manda a verdade dizer que Gualberto do Rosário, com a publicação da Cor do Papel Verde com a chancela da Editora Pedro Cardoso, consolidou ainda mais, com mérito próprio, o seu nome no cenário da literatura de Cabo Verde como um romancista de referência com ambição universalista. Não se pode falar do romance em Cabo Verde sem se referir ao nome de Gualberto do Rosário. Não só o seu prestígio como romancista numa perspectiva qualitativa, mas também quantitativa.
Gualberto do Rosário não é grande romancista apenas por causa do objecto ou do temário das suas obras. Não. O que importa não é o objecto. Mas sim o método. Neste caso, a forma de apreensão dessa realidade social e universal através do romance.
Outros críticos já o disseram. Fica assim afirmada uma primeira grande qualidade do romancista Gualberto do Rosário, que é a mestria do manejo de um das mais relevantes ferramentas de um romance ou de qualquer obra literárias, que é a linguagem, nesse caso, a língua, a lingua portuguesa. Passo a citar: ‘Gualberto do Rosario é um exímio operário da língua portuguesa’.
Como dizia Todorov, um dos mais importantes teóricos da literatura , um texto para ser poético tem de ter pertinência poética, a qualidade de poeticidade. Um livro para ser romance tem de ter essa pertinência de ser romance. A Cor do Papel Verde é um romance. Um grande romance.
Mestre no manejo das técnicas do romance
Além das virtualidades ao nível da linguagem e da ampla capacidade criativa e imaginativa; mas dentro do quadro da chamada verossimilhança da realidade, o autor, nesta obra, emerge também como um mestre no manejo dos elementos, dos chamados elementos estruturais do romance com efeitos sobre a adesão do leitor à narrativa. Um Romance de grande qualidade em termos de organização técnica. Na linha, dos preceitos das escolas como o formalismo ou o estruralismo, por exemplo, o que vale é a obra em si. E o romance Cor do Papel Verde fala por si. Vale em Cabo Verde ou em qualquer parte do mundo. Em virtude da abordagem universal dos temas. Vale pelo enredo, pelo trama, apresentado numa narrativa empolgante de diversidade temporal e espacial.
Relevam-se na obra não só as narrativas, o enredo ou o trama em si, mas também a maneira, a forma, o modo, em suma, a arte que presidiu a narração dos factos romancescos no decurso dos capítulos e com um desfecho final que, por sinal, ocorre logo no início do romance. Com o recurso a técnicas do flash back, o narrador vai fazendo desenrolar os acontecimentos até ao epilogo, desfecho final, dramático, trágico.
Isto é, o leitor que começa a ler as primeiras paginas do livro é catapultado para uma série de peripécias que vão ocorrendo à volta do protagonista Boaventura Espirito Santo, um cabo-verdiano nascido na ilha do Fogo, que emigrou para a Europa. Por causa de um facto fortuito, por um mero acaso, por causa da curiosidade em abrir uma mala (por sinal cheia de florins e coroas), a vida dele sofreu uma reviravolta de 360º. Da interação do protagonista com outros personagens, emergem narrações de factos internacionais caracterizados com grande mestria, sobre tópicos candentes da actualidade, seja Cuba de Fulgêncio Baptista, emigração da Irlanda para os Estados Unidos, Guerra das Correias e do Vietname, dinâmica da emigração da Itália para o Brasil, entre outros. Bem como tópicos das finanças internacionais e de negócios proibidos (tráfego de droga e de armas, lavagem de capitais etc.) Ao que se acrescentam os temas de Cabo Verde e das Ilhas.
Estamos, pois, perante um grande romance moderno. Com uma perfeita técnica narrativa, o autor cumpre o preceito de que o Romance é uma estrutura narrativa aberta e não um tema ou temas, um género hibrido com vários núcleos de personagens, um encadeamento de acções, de conflitos que nos leva a um desfecho, a um clímax. Ao mesmo tempo que vai misturando diversos registos numa atraente complexidade com início, meio e fim, com profundidade e universalidade. Tudo isto está na obra A Cor do Papel Verde para ser apreciado e degustado pelo leitor.
Nesta obra pode-se encontrar um elemento de originalidades no quadro da literatura que se faz em Cabo Verde. Que concerne ao modo como Gualberto faz a abordagem das categorias do tempo e do espaço, da relativização do espaço e tempo pelo recurso apenas ao discurso indirecto livre. Neste romance quase que não há discurso directo, não há diálogos. Bem como a combinação na medida certa dos elementos estruturais de um romance, como o enredo, foco narrativo, personagens, tempo e espaço que confere uma grande dinâmica narrativa e poder de atração. Original.
O Narrador da obra, pelo modo como apresenta e organiza os eventos, conseguiu conferir o elemento da verossimilhança. Não tem de ser verdadeiro no sentido de corresponder à realidade exterior. Mesmo inventados, os factos parecem verdade, o que dá credibilidade e qualidade à narrativa.
Ocorre nesta obra, o que Bakhtin (1997) chama de micromundos, que servem de pano de fundo para a construção das narrativas. Esta é uma obra de vários micromundos apresentados através da apresentação dos personagens. Mas também de macromundos ou de eventos que dizem respeito a um âmbito maior, regiões, países, ou planeta. O narrador, além da abordagem polifonicamente criativa, recorre à ironia imaginativa e aos suspense próprio do policial bem como à vontade deliberada de atrair e agradar o leitor.
Longe está o Gualberto de um grande perigo que afecta vários escritores de países da periferia. Que é o localismo. O local apresentado de forma etnográfica não é literatura, pelo menos, pelas lentes de universalidade. O local tem de ser trabalhado e apresentado numa perspectiva de universalidade, que pode ter sentido por todos os homens em qualquer parte do mundo. Gualberto conseguiu atingir esse requisito de universalidade tanto no temário como na abordagem.
Promoção de Cabo Verde no quadro da lusofonia literária
A posição actual da literatura Cabo Verdiana no contexto da lusofonia é corolário do esforço de vários homens e mulheres que cultivaram as letras e se dedicaram à poesia e à prosa. Todavia, as exigências das novas gerações para continuar esse trabalho são cada vez maiores. A tarefa não é fácil. Mas, pessoalmente, fico optimista quando, temos nomes como o Arménio, Vadinho, entre outros, na poesia, e Germano Almeida e agora Gualberto do Rosário no romance.
Como Gualberto do Rosário já beneficia de um posicionamento como um dos protagonista pela concepção das politicas económicas para a substituição do paradigma da economia planificada para uma economia de mercado aberta ao mundo, não foi fácil a consolidação do seu nome, desta vez, como um romancista de referência.
Em conclusão, concordo com aqueles que, antes de mim, afirmaram que ‘Gualberto do Rosário é um Romancista de primeira água, dos mais importantes da literatura cabo-verdiana da atualidade’. Com a qualidade literária deste romance, A Cor do Papel Verde, António Gualberto do Rosário está a traçar novos caminhos para a literatura Cabo Verdiana e apresenta-se como um representante qualificado de Cabo Verde no cenário do romance da Lusofonia.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1008 de 24 de Março de 2021.