Emigração cabo-verdiana para Senegal, nos anos 60 do século passado no navio Novas de Alegria

PorBruno Spencer,16 mai 2021 8:16

​Entre as várias razões que me levam a gostar do mar, vou indicar apenas duas: primeiro, por ser ilhéu, depois porque meu pai era marítimo. Sobre esta última razão, utilizando a frase de Baltasar Lopes, no seu livro “CHIQUINHO”, fui criado com dinheiro ganho “RIBA D’ÁGUA D’MAR”. Por este facto, rendo sempre homenagem ao meu falecido pai, António Spencer, por todo os sacrifícios que fez para me criar, trabalhando numa área muito difícil.

Antes de falar da emigração cabo-verdiana para o Senegal, queria destacar a importância que este país vizinho teve para nossa história. Muitos cabo-verdianos, fugindo à fome e à miséria, foram para o Senegal. Também aqueles que queriam ir à Holanda e à França, conseguiram-no através do mesmo. Falando da emigração para Europa, seria bom lembrar a música de Zezé di Nha Reinalda em que conta suas peripécias em Dakar para pagar dinheiro para poder tomar o barco para ir à Europa. Mais, Senegal foi um refúgio político para os cabo-verdianos perseguidos pela PIDE, a Polícia Política Portuguesa, durante o regime colonial. Ler, por exemplo, a história do Dr. Leitão da Graça, sua fuga para Senegal, no livro de José Vicente Lopes, “BASTIDORES DE INDEPENDÊNCIA”.

Meu pai, desde os anos 30 do século passado, fazia a viagem, ora como marinheiro, ora como cozinheiro, nos navios de Cabo Verde para os países da África Ocidental. Ele foi ao Senegal, Gâmbia e Guiné Bissau.

Quando eclodiu a segunda guerra mundial, meu pai estava em viagem para Senegal

O navio em que meu pai se encontrava, estava fora das águas de Cabo Verde e navegava calmamente para o Senegal, mas de repente apareceu um submarino alemão ao lado, toda a tripulação ficou com medo, não sabendo a razão por que o dito aparelho de guerra estava muito perto deles. Houve um tripulante que chorou, pensando que a embarcação iria ser afundada. O submarino deu mais do que uma volta ao navio e depois abandonou-o. A tripulação não sabia de nada e quando chegaram ao Senegal, foram-lhes dito que a guerra mundial tinha eclodido. Meu pai me contou que a sorte deles era que Portugal não estava em guerra e a bandeira içada comprovava a nacionalidade da embarcação.

Contratação do meu pai para trabalhar no Novas de Alegria

Nos meados dos anos 60, eu devia ter meus 6 ou 7 anos, apareceu em nossa casa, em Achada Santo António, o Sr. Dico, Capitão, pedindo ao meu pai que fosse responder ao Sr. Raul Andrade que era dono do Novas de Alegria, o armador morava também na mesma rua. Meu pai foi responder ao Sr. Raul e desse encontro, foi contratado para trabalhar no navio como cozinheiro. No mesmo dia, o navio foi para São Vicente para doca, no estaleiro conhecido por Wilson. O navio ficou em reparação durante alguns meses e depois regressou à Praia.

Bandeira portuguesa não entrava nos portos de Dakar

Quando começou a guerra na Guiné, Portugal tinha bombardeado Casamansa. Por causa dessa acção, houve corte das relações diplomáticas entre os dois países, isto está escrito no livro “Memórias” do antigo Presidente Senegalês, Abdou Diouf. Uma vez que bandeira portuguesa não podia entrar no Senegal, os armadores cabo-verdianos que queriam levar as suas embarcações para Dakar, tinham de mudar a nacionalidade do navio. Foi assim que Novas de Alegria fazia viagem a Dakar com bandeira do Panamá. Conheci também outro navio, Fátima, que fazia ligação com Dakar que usava também a mesma bandeira, cujo proprietário era Sr. José Silva.

Os passageiros clandestinos para Senegal eram tomados em Santa Cruz

A viagem de Novas de Alegria era Praia-Dakar e vice-versa. A embarcação só podia levar carga e não passageiros. A PIDE exercia controlo rigoroso sobre a ida de passageiros para o país vizinho. Para fugir à vigilância das autoridades, a embarcação tomava os passageiros em Santa Cruz, num local que se chama Porto Fundo. Os passageiros compravam passagens em casa do armador e iam ao local, esperando o navio. O Novas de Alegria saía sempre no período da tarde depois de ter sido despachado pela PIDE e pela Polícia Marítima. Chegava ao Porto Fundo sempre no período da noite, para poder sentir mais seguro das autoridades e com o bote da embarcação todos os passageiros eram levados da terra para o navio.

Meu pai contou-me que uma vez, Novas de Alegria estava a caminho de Santa Cruz, já era noite, viram uma embarcação, o armador temendo que se tratava de algum barco de guerra que estava a vigiá-los, deu ordem para que a embarcação regressasse ao Porto da Praia. Uma vez que o navio já tinha sido despachado, inventou-se uma desculpa, dizendo que tinha havido avaria na máquina.

Contou-me ainda que às vezes eram tantos os passageiros em terra que o Sr. Raúl ficava espantado, talvez não era ele quem vendia directamente as passagens. Novas de Alegria levava, às vezes, mais de 30 passageiros.

Produtos levados de Dakar para Cabo Verde

Os produtos de Senegal tinham muito procura em Cabo Verde. Estávamos nos anos 60 em que Cabo Verde estava praticamente fechado ao mundo. De Dakar vinha praticamente tudo, talvez o espaço não chegue para dizer tudo o que vinha. A chamada cama “spring”, bicicletas, roupas, drops, perfumes, calçado de plástico, latas de tintas vazias, etc.

Dos produtos acima referidos, recordo-me muito bem da cama “spring” porque tínhamos uma em casa e só nos desfazemos dela passados mais de 50 anos. Lembro-me que os noivos quando marcavam casamento, iam à nossa casa encomendar a dita cama.

Lata de tinta vazia era muito procurado. Meu pai tinha primos que eram pintores e dava-lhes as latas. É sabido que um dos trabalhos que mais se empregava a mão de obra cabo-verdiana no Senegal era pintura. Na altura, em Cabo Verde, a maioria das pessoas utilizava água dos chafarizes e essas latas eram muito procuradas para fazer o transporte do precioso liquido.

Encontro com os combatentes do paigc em Dakar

Meu pai nunca se encontrou com combatentes do PAIGC, mas contou-me que o motorista do navio teria encontrado ou visto Amílcar Cabral num local de diversão em Dakar.

O único combatente do PAIGC que meu pai conhecia era Joaquim Pedro Silva, conhecido por Baró, hoje morto, porque ambos eram da Ilha do Maio. Meu pai disse-me que um tripulante da Ilha do Maio, de nome Duké, encontrou-se com Baró. Cheguei a falar com o Baró sobre o que dissera o meu velho e confirmou o referido encontro com seu patrício da Ilha do Maio. Baró disse-me que quis dar ao Duké panfletos e outros documentos para trazer para Cabo Verde, mas o tripulante recusou. A recusa estaria certamente relacionada com apertada vigilância que a PIDE fazia, porque se tivesse trazido os documentos, a vida dele correria perigo.

Perante a ameaça da PIDE e outros, o Novas de Alegria deixou de fazer a ligação Praia/Dakar, e o proprietário mudou a nacionalidade do navio para portuguesa, passando o mesmo a fazer viagem entre nossas ilhas. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1015 de 12 de Maio de 2021.

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Autoria:Bruno Spencer,16 mai 2021 8:16

Editado porAntónio Monteiro  em  16 mai 2021 8:16

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