Desafios do novo governo

PorVictor Fidalgo,20 mai 2021 10:13

Hoje será empossado o novo Governo. Tendo o MPD, ganho as eleições, a grande questão que se põe é se será uma mera continuidade da governação nos moldes anteriores ou se assistiremos a mudanças profundas ou superficiais de políticas, em função da leitura que tanto o partido vencedor das eleições fizer como também das mensagens recebidas da opinião pública.

Em primeiro lugar, há que dizer, A luta contra a pandemia do corona-virus é uma prioridade que se impõe de per si, independentemente da vontade do Governo. Do meu conhecimento, depois da segunda Guerra Mundial, nunca o sector da saúde esteve em primeiro plano da agenda de nenhum Governo do mundo, tanto como hoje. E neste momento, a segurança sanitária global ou universal continua sendo o maior desafio de todos os países do mundo. Assim, Cabo Verde, como membro do concerto das nações, não poderia ser excepção e o Governo, desde Março de 2020, vem assumindo este desafio. A razão é simples. Sem saúde e segurança sanitária, não há produção de bens e serviços; não haverá o nível de produtividade desejado, nem tão pouco, a criatividade e inovação nos processos económicos, sociais e culturais; não há liberdade de circulação de pessoas e bens, sem a qual não haverá actividade económica; a recessão aprofunda-se e a pobreza aumenta.

Assim se compreende que para estabilizar a sociedade, dar esperança às pessoas e repor a máquina produtiva a funcionar, de entre os desafios do novo Governo, a saúde vem em primeiro lugar. E passamos a enumerar e enquadrar algumas.

  • A.vacinação massiva da população, a fim de se restabelecer a livre circulação de pessoas entre as ilhas e entre Cabo Verde e o mundo, com base na certificação do país pela OMS e reconhecimento pelos nossos principais parceiros, como país seguro. Sabemos que há uma relativa escassez de vacinas no mundo, mas devemos, de forma astuta e pondo Cabo Verde acima de tudo, focar-nos numa diplomacia dinâmica e com muita astúcia e acutilância, a fim de obtermos as quantidades necessárias. É claro que não basta a vacinação. O novo Governo deverá:
  • 1.continuar a reforçar e modernizar as infraestruturas de saúde,
  • 2.descentralizá-las, na medida do possível (a fim de levar a saúde às populações dos vários cantos do país);
  • 3.aumentar as competências técnicas e aprofundar a especialização do pessoal médico e farmacêutico, sem descurar a cooperação com Portugal e Senegal.
  • 4.Criar condições para atrair especialistas de quaisquer nacionalidades a instalar-se em Cabo Verde, sem entraves administrativos e burocráticos. (Poderíamos inspirar-nos no exemplo da Côte d’Ivoire do tempo do seu primeiro Presidente, o falecido Félix Houphouet-Boigny).
  • B.Retoma progressiva das actividades económicas: à medida que a segurança sanitária se consolida, a retoma da economia toma forma e conteúdo. A pandemia paralisou vários sectores da economia mundial e nacional bem como as actividades culturais e sociais correlacionadas, o que levou a uma elevada taxa de desemprego e um relativo empobrecimento das populações que trabalham no sector privado. Assim, impõe-se uma agenda de relançamento económico que deverá obrigatoriamente incluir profundas reformas:
  • 1.TURISMO: sendo o motor da nossa economia, todos os olhos e esperanças estão voltados para este sector. A sua retoma implica obrigatoriamente a necessidade de recapitalização das empresas do sector. Este processo é incontornável. As empresas tiveram que consumir as suas reservas, algumas tiveram que se endividar para sobreviver.
  • a)A retoma do turismo deverá ser acompanhada de profundas reformas no sector, a começar pela centralização da sua regulamentação, a fim de termos um padrão nacional do produto. Isso significa reforçar certas valências e os poderes do ministério responsável pelo turismo;
  • b)Diversificação dos mercados emissores, a fim de diluirmos os riscos e simultaneamente atingirmos certos nichos. Estamos limitados a 5 mercados emissores que detêm mais de 65% do fluxo turístico. Ademais, grande parte dos turistas que nos visitam não têm um poder de compra elevado. É possível e necessário fazer mais e melhor;
  • c)Estímulos a novos operadores/distribuidores com incentivos especiais àqueles que operam em nichos com maior poder de compra, a fim de aumentarmos a receita por turista e diluirmos a concentração. Mais de 60% dos turistas é transportado por um único operador, o que mostra a nossa ainda debilidade e a necessidade urgente de ir conquistar novos operadores e tentar progressivamente melhorar o indicador gasto por turista. Como instrumento de medida, devemos considerar o ratio IVA/turista.
  • d)Substituição da meta de quantidade pela de qualidade. O Governo tinha a meta de atingir 1.000.000 de turistas em 2021. Esta intenção deverá ser mantida e necessariamente será ultrapassada durante a legislatura que começa agora. Contudo, é imperioso que não se contente apenas com a quantidade de turistas. O mais importante, como frisamos no ponto anterior deve ser o impacto económico do fluxo turístico. Ora para interessar turistas com maior poder de compra, portanto mais exigentes, é urgente procederemos àrevisão de certas normas de Ordenamento do Território, com foco na redução dos índices de ocupação do solo e de edificabilidade, nomeadamente a altimetria na orla marítima que deve ser muito baixa. O turista do futuro vai querer cada vez mais espaço aberto e mais áreas verdes. Será um turismo cada vez mais ecológico e amigo da natureza. A centralização da regulamentação dos critérios e procedimentos rápidos de aprovação dos empreendimentos turísticos, onde quer que estejam (ZDTI ou área urbana) deverá ser o melhor instrumento do foco na criação de unidades de qualidade e que atraiam turistas com elevado poder de compra.
  • e)Estímulo à progressiva diversificação geográfica dos novos investimentos, através de um esforço orientado, a fim de reduzir o despovoamento de certas ilhas, tais como Santo Antão, S. Nicolau e mesmo S. Vicente ou Fogo. Este objectivo não se consegue com meras declarações ou desejos. Há que reforçar e tornar os instrumentos de estímulos de diferenciação na fiscalidade mais atractivos, em função das ilhas e dos objectivos que se pretende. De notar que os consultores do Banco Mundial nem sempre compreendem esta necessidade, talvez até não a conheçam. Portanto, o Governo deve ter negociadores experientes e competentes, a fim de fazer valer certas causas, para que as políticas definidas sejam capazes de trazer resultados. Assim, criam-se empregos novos nas ilhas, levando novas actividades ao mundo rural, trazendo este para a modernização. Em consequência, reduzem-se a pobreza e a necessidade da migração interna.
  • f)Habitação dos trabalhadores do sector: a centralização da regulamentação do turismo atrás referida, deverá conter novas normas que garantam que os futuros novos investimentos hoteleiros (com mais de 30 camas) incluam os custos de novos assentamentos populacionais ou requalificação dos existentes, a fim de melhorar as condições de vida das populações.À semelhança do Fundo do Turismo, gerido de forma centralizada, pode-se pensar em criar um Fundo de Expansão e Requalificação da Habitação, de modo a atingir o desiderato. A emissão/renovação da Licença de Construção de qualquer novo empreendimento hoteleiro, deve ser precedido do pagamento da contribuição ao Fundo. A gestão compartilhada entre o Governo e o Município interessado, permite garantir a eficácia e eficiência da utilização dos recursos.
  • 2.CONETIVIDADE ENTRE AS ILHAS E COM O EXTERIOR
  • a)Transportes aéreos internos. Infelizmente, este fim de semana, aconteceu o que alguns temiam: tentativa da BINTER de pressionar excessivamente ou mesmo chantagear o Governo. Não vamos procurar os culpados, mas devemos concluir que o processo desenhado para a estratégia do transporte aéreo interno não era consistente, razão por que falhou. Há que revisitar a estratégia e modalidade da política de transportes aéreos internos. Há que definir melhor o quadro do interesse público, a compensação pelo serviço público obrigatório, de forma bem clara e sob estrita gestão da AAC. O Governo não deve continuar a ser o interlocutor do(s) operadore(s) dos sectores regulados que se recorrem a ele, de acordo com as suas conveniências. As agências devem ser providas de pessoas com grande conhecimento do sector (costumo dizer que o regulador deve conhecer o sector pelo menos, igual ao regulado), a fim de as suas decisões serem bem fundamentadas técnica e legalmente e o recurso deveriam ser os Tribunais, caso estes funcionassem com celeridade no tratamento das questões económicas. Infelizmente não é assim, o que complica a resolução de diferendos.
  • b)Transportes aéreos internacionais: Se é verdade que até 2019, havia um bom número de voos, o número de companhias ainda é baixo, devido à concentração da distribuição de turistas, como frisamos acima.O novo Governo deveincentivar novas companhias aéreas a fim de apoiar um turismo aberto, competitivo e de alto valor acrescentado. Faz sentido, nesta fase, criar um pequeno Fundo de Conetividade, a fim de subsidiar (com objectivos contratualizados e claramente definidos e durante tempo limitado) as companhias aéreas que iniciam operações novas, visando estimular a procura turística.
  • c)De forma muito corajosa, clara e transparente, deve-se revisitar o processo da privatização da TACV/CVA aos islandeses. Já se perdeu muito tempo e muito dinheiro, sem resultados. Portanto, a clarificação das aobrigações do parceiro maioritário e estratégico da TACV/CVA é urgente e de interesse não só financeiro, mas também económico e político, porque sendo Cabo Verde uma nação diasporizada, a ligação com os principais núcleos da nossa comunidade é parte essencial da política de qualquer governo.
  • C.TRANSFORMAÇÕES ESTRUTURAIS: O Governodeve necessariamente acompanhar a retoma económica no país com profundas reformas estruturais, a fim de tornar o país mais resiliente e com uma economia mais diversificada:
  • 1.Economia azul e criação da plataforma marítima – Semdúvidas que as potencialidades do mar, quer no domínio pesqueiro, mas particularmente no domínio marítimo-portuário encerram grandes oportunidades. Mas o processo deve ser concebido e conduzido vendo Cabo Verde não como o Centro do Mundo, mas sim como mais um elemento da cadeia de circulação de bens e serviços marítimos, a nível mundial. Consequentemente, devemos ver um todo que inclui as infraestruturas portuárias e os serviços quer a montante quer a jusante. O objectivo seria atrair um grande player, de renome mundial, que por sua conta e risco se comprometa e dê provas de desenvolver uma plataforma de serviços marítimo-portuários, de modo a transformar Cabo Verde em mais uma base logística do transporte internacional de mercadorias, no Atlântico Médio. Queremos crer que é esta a visão do Ministério da Economia Marítima.
  • 2.A transição energética: Fala-se muito das nossas potencialidades nas energias renováveis. Contudo, além do ainda elevado peso dos combustíveis fósseis na nossa balança energética, o custo da energia é demasiado caro tanto para a economia como para as famílias. Ligado a este elevado custo, há também o elevado custo da água dessalinizada. Por conseguinte, a estratégia da transição energética em Cabo Verde, mais do que um slogan, deve ser um caminho para termos mais energia e mais água, a preços muito mais baixos que actualmente.
  • 3.Modernização da agricultura: tenho dito que a agricultura em Cabo Verde tem grandes limites para o seu crescimento: escassez de terra arável e de água. Contudo, o que se obtém da agricultura poderia ser mais e melhor. Será que nos produtos que temos actualmente (mandioca, batata, banana, papaia, etc), estamos a nível da produtividade mundial? A modernização da nossa agricultura deverá passar essencialmente pelo aumento da produtividade, melhoria de certos produtos, de modo a aumentar o seu valor comercial e contribuir para a melhoria dos rendimentos dos produtores.
  • 4.Economia digital: Fala-se muito da economia digital e hoje em dia não se referir a isso, coloca-nos no século passado. Mas não basta falar. Há que criar as infraestruturas necessárias e acessibilidades da grande parte dos caboverdianos aos instrumentos da economia digital. Temos feito algum progresso, nomeadamente nos processos administrativos, bancários, etc. A continuação do empenho em estar em dia com os avanços das TIC’s é primordial e acredito que o Governo vai continuar atento como vem sendo o caso.
  • 5.Identificação de indústrias de (re)exportação: Cabo Verde não tem nem matérias-primas, nem tão pouco conhecimento endógeno que lhe pudesse ser uma pequena fábrica de certos produtos. Entretanto, acreditamos que, com políticas adequadas, se possa atrair alguma indústria ecologicamente sustentável e dar a este sector um certo desenvolvimento. Talvez alguma indústria se desenvolva, caso conseguirmos criar uma plataforma eficiente de serviços marítimo-portuários!
  • D.Alívio da dívida externa: A dívida pública externa, ou melhor, o seu aumento com relação ao PIB, começou desde os anos 2007/2008. Recentemente, esse ratio se agravou, face aos encargos extraordinários impostos pelo combate à COVID e à proteção social, do emprego e das empresas. Acreditamos que será possível reestruturar a dívida bilateral que tem um elevado peso no cômputo geral. Nomeadamente a conversão da dívida em capital, em certos projectos de rentabilidade duvidosa, tais como “Casa para todos”, as “barragens”, etc.
  • E.INCENTIVAR NOVOS INVESTIMENTOS A FIM DE CRIAR MAIS EMPREGOS: Não bastará a reabertura das empresas, para:
  • 1.retomar o processo pré-covid de redução da taxa de desemprego;
  • 2.reduzir a população inactiva que tende a aumentar (193.735 pessoas)
  • Devemos incentivar de forma inteligente tanto os investimentos privados nacionais como os estrangeiros, porque sem novos investimentos não há outra forma de absorver a crescente mão de obra que vai chegando ao mercado, à procura do primeiro emprego.
  • Victor Fidalgo
  • Especialista em Relações Económicas Internacionais

Consultor e Promotor de empresas.

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Autoria:Victor Fidalgo,20 mai 2021 10:13

Editado porAndre Amaral  em  20 mai 2021 10:13

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