Há pouco mais de dois meses, a ilha de São Nicolau perdeu, para sempre, um dos seus grandes filhos no campo do artesanato, nascid e criod na Calenjon.
Miguel Fortes (Djey) era filho de João de Nhâ Marê Milha e Maria de Tia Bia, residentes em Caleijão, localidade do Município da Ribeira Brava, São Nicolau.
Djey foi, de facto, um artesão de fino trato, inspirado por uma terra fértil em criatividade. Nos tempos passados, essa aldeia exerceu uma função muito importante na história de São Nicolau e de Cabo Verde. Mas hoje, a nível nacional, é conhecida, sobretudo, por ser o berço do primeiro grande escritor da literatura cabo-verdiana: Baltazar Lopes da Silva, famoso sobretudo pela sua obra-prima “Chiquinho”.
Djey iniciou a sua formação com o seu mestre Nhô José Roque, da Vila da Ribeira Brava, lá na Tchãzinha. Como diz a Eulalia, filha de Nhô José Roque, Djey iniciou o aprendizado nos anos ‘80, com o pai dela, e em pouco tempo aprendeu a fazer bandejas e balaios. Sendo a tecelagem uma arte que Djey gostava muito, foi aperfeiçoando até desenvolver uma forma muito pessoal, com muita criatividade até criar o seu próprio estilo.
Em todo lado da casa de Djey, artista da cestaria cuja obra encarnava o seu criador, estavam as obras acabadas e muitas em fase de acabamento: cestos, balaios, canastras e fruteiras confeccionados com vara de barnedera e bandejas de várias dimensões para uso doméstico e com função decorativa. Ainda com função decorativa tecia, com uma mestria indescritível, peças pequeníssimas, como chinelinhos, coração e outras dotadas de íman para colocação na porta da geladeira, com matéria-prima de origem vegetal – tona de coqueiro. Expunha também outro tipo de peças decorativas por ele criados como casinha tradicional e garrafas artisticamente forradas com tecelagem confeccionada a partir de casca seca de tronco de bananeira.
Por causa do seu carácter, pois era um homem de forte personalidade, mas também do seu rigor e elevado grau de organização, as autoridades temiam a sua reacção, quando as coisas não corriam bem nos preparativos da sua participação, como artesão, nas exposições em Cabo Verde e no exterior. Não era muito diplomático com as autoridades... mas era muito amado e apreciado pela população. Homem que não brincava, Djey, como de resto acontece com artistas de renome, não era um homem comum. Às vezes ele era mesmo rafilom, sobretudo quando achava que não estava sendo devidamente valorizado como artesão.
Djey não fazia diferença entre o tratamento reservado à sua obra e a ele mesmo. Por isso, sabia que se a sua obra era valorizada, considerava que também tinha que lhe ser dado a devida consideração. Assim, no seu entender, ele e a sua obra eram a mesma coisa e nesta perspetiva, requeria para si aquela dignidade que era atribuída às suas obras, que por sua vez encarnavam o seu criador.
As suas criações eram a expressão do seu rigor, da sua procura de perfeição e da sua perceção de beleza, que revelavam também um forte apego à tradição do artesanato da ilha de S. Nicolau.
Detestava participar na Feira Agro-Cultural que o Município organiza todos os anos na Passagem da Vila de Ribeira Brava. Por essa ocasião, a ribeira da passagem é toda vestida e enfeitada com duas filas laterais de stands que expõem os melhores produtos da agricultura, do artesanato e da gastronomia: grogue de terra, ponche de vários sabores de fruta, mas infelizmente nem sempre de grogue de Terra. Não poderia faltar o palco central para receber os melhores músicos e intérpretes da ilha. Tudo é bem feito e organizado para valorizar os produtos da ilha e pa passá sabe.
Mesmo num contexto assim tão atraente, economicamente, Djey nunca aceitou o convite a participar. O espaço e o ambiente não correspondiam às suas exigências, ao seu ideal. Queria muito mais, porque a sua obra, para ele e para muitos, merecia mesmo. Era bastante selectivo nesse aspecto. Até porque achava que quem estivesse interessado em comprar a sua obra, podia ir visitar a sua exposição pessoal na Biblioteca Central da Vila, no Centro da Juventude ou na sua casa no Caleijão.
Djey defendia a sua arte até ao extremo. Não fechava nenhum compromisso sem ter a certeza que as regras de organização e seus princípios eram respeitados. Era um homem que podia ser visto como intransigente, mas respeitava as regras, tinha lealdade para consigo, de acordo com seus próprios princípios e para com os outros.
O que à primeira vista poderia parecer como uma rigidez devido ao carácter dele, era de facto sinal de um homem de grande personalidade, com uma educação baseada em princípiosrigorosos e bem sólidos, difícil hoje de encontrar. E se formos analisar a sua obra, ela mesma vai-nos revelar as mesmas características moldadas pelas mãos do autor. A beleza da sua obra é visível no seu estilo rigoroso e ao mesmo tempo delicado, simples e ao mesmo tempo majestoso, e a firmeza das suas mãos dava-lhe confiança. Era crítico em relação a tudo, mas dedicava muito amor à sua arte.
São essas características a distinguir o autor em apreço e a classificá-lo como o melhor artesão de Cabo Verde.
Enfim, Miguel Fortes participou em muitas feiras que coroaram uma vida inteira dedicada ao artesanato. O seu percurso como artesão e as suas participações em eventos culturais elevaram a ilha de S. Nicolau e Cabo Verde a um patamar muito alto.
Como nota final, fica o apelo que se deixa aqui, dirigido, em primeiro lugar, à população de Caleijão, mas também a todo o povo de S. Nicolau, em outras ilhas de Cabo Verde e na diáspora.
Miguel Fortes ou Djey de Maria de Ti Bia cumpriu de forma excelente a sua missão nesta Terra, deixando um grande património cultural, de valor inestimável. Agora, cabe a nós revelar a nossa gratidão eterna a Djey e darmos prova de merecer esse património. Basta que um grupo de pessoas, apoiado pela Camara Municipal e pelo Ministério da Cultura, seja promotor de uma iniciativa capaz de valorizar a figura do mestre Miguel Fortes e a sua obra, para sempre.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1034 de 22 de Setembro de 2021.