Passados sete anos, a nova visita inspirou estas reflexões sobre as medidas adoptadas desde a última erupção, feitas à luz da investigação em que venho colaborando no campo da adaptação do património edificado ao risco vulcânico[1] .
Uma das vantagens da idade é permitir o confronto entre ocorrências bastante separadas no tempo. Também em 1995 eu tive a oportunidade de acompanhar a resposta de emergência à penúltima erupção e as medidas que se seguiram com vista à normalização das condições de vida da população da Chã (e, em 1951, pode-se dizer literalmente como na fábula do Lobo e do Cordeiro: “se não foste tu, foi o teu pai”). Em comum, as duas experiências revelaram-me a grande força anímica e resiliência do povo da Chã. Em contraste, é grato registar que na ocorrência mais recente a resposta foi mais organizada e eficaz, dando prioridade à recuperação do capital humano extraordinário que pulsa diariamente na Chã das Caldeiras. Evitando os erros do passado, que visavam impôr o abandono definitivo da Chã recorrendo à supressão de infraestruturas básicas como a escola ou o posto sanitário, as medidas de apoio agora tomadas pelas autoridades permitiram que em tempo recorde a Chã tenha tirado partido da oportunidade criada pelo desastre, não só recuperando, mas ultrapassando o grau de desenvolvimento em que a comunidade se encontrava em 2014.
Entre os exemplos notáveis da eficácia da recuperação conta-se a melhoria da rede viária, estando quase a tornar-se realidade aquela que é a mais importante medida de mitigação da vulnerabilidade vulcânica da Chã das Caldeiras, a par com a monitorização geofísica (que o INMG tem levado a cabo de modo exemplar e com reconhecimento internacional). Refiro-me à ligação ao exterior através de uma segunda estrada, para Norte, terminando com a indesejável “ratoeira” que é ter um único acesso viário exposto às escoadas de lava. Mas os exemplos continuam: a construção de um edifício escolar condigno; a realização de um furo para abastecimento de água; a introdução de iluminação pública com recurso a energia solar, etc. Se bem que as restrições impostas pela pandemia não tenham permitido ainda a plena retoma da actividade turística, a vitalidade da população correspondeu à aposta na Chã, aumentando significativamente a oferta de alojamento para visitantes, bem como o número de restaurantes e bares. Vislumbra-se um futuro em que os visitantes dos vários cantos do mundo se continuarão a maravilhar com a experiência única que é a hospitalidade da população da Chã das Caldeiras.
Mas, inevitavelmente, existem riscos latentes (humanos, que os naturais são evidentes) de que o progresso coloque em causa a galinha dos ovos de ouro da oferta turística do Fogo. Estas notas de quem frequenta regularmente a Chã das Caldeiras desde há 30 anos pretendem ser um aviso construtivo à navegação, na esperança de que alguns aspectos menos consensuais possam ser reanalizados, quiçá rectificados.
Um primeiro aspecto que salta à vista no reordenamento do território da Chã é a preferência dada à Bangaeira para a reinstalação da população, aparentemente com base no pressuposto de que a perigosidade vulcânica dessa zona seria inferior à da Portela. Contudo, não se conhecem estudos científicos que apontem nesse sentido, e tive pessoalmente oportunidade de coordenar um mapeamento da perigosidade vulcânica realizado para as autoridades Caboverdianas em 2014 (meses antes da última erupção) que contraria essa noção. A própria erupção de 2014 se encarregou de mostrar que a Bangaeira está exposta a escoadas provenientes do sector sul da Chã das Caldeiras, para lá da exposição óbvia a escoadas provenientes do sector norte. Salvo melhor explicação, aparenta ser desconcertante a preferência dada à região da Bangaeira, se o fito dessa escolha foi a redução do risco vulcânico.
Outro risco de origem antrópica prende-se com o planeamento urbano, que ao ter por base uma abordagem convencional da qualidade de vida da população pode comprometer a atractividade da Chã das Caldeiras para o turismo, acabando assim por lesar a qualidade de vida que se pretendeu promover. Nesse aspecto, pode dizer-se que a Chã se está a tornar um laboratório para o estudo da reabilitação pós-desastre. Do balanço entre o esforço de ordenamento do território e o conservadorismo atávico da população, estão frente a frente no terreno dois modelos de recuperação: na Bangaeira, metódico, planeado e com tipologias contrutivas normalizadas, ditado por influências externas; na Portela, expontâneo, orgânico, logo mais genuíno. Sem perder de vista o imperativo de promover a qualidade de vida e as condições condignas para a população, há que ponderar qual dos modelos melhor preserva a magia que tem feito com que milhares de visitantes se encantem com a Chã das Caldeiras.
Regressando ao risco vulcânico: dada a a natureza predominantemente efusiva das erupções históricas do Fogo, parece consensual que o principal fenómeno adverso a ter em conta são as escoadas de lava. Contra estas, a medida de protecção eficaz é a cota a que se edifica. Por outro lado, as características da topografia da Chã impõem um delicado equilíbrio que tenha em conta o perigo de queda de blocos rochosos da bordeira. Na procura desse equilíbrio, as encostas do Monte Amarelo poderão proporcionar a melhor solução para as infraestruturas mais vulneráveis. Constata-se aliás que no período em que a estrada de emergência esteve em uso se verificou um primeiro impulso de construção na encosta por onde essa estrada passava, mas que viria a ser preterido a favor dos terrenos mais planos – logo, mais expostos - quando se abriu a nova estrada através da recente escoada de lava. Talvez uma oportunidade perdida de condicionar a localização do edificado através da implantação criteriosa das infraestruturas?
Também a localização do furo de abastecimento de água a norte do Monte Amarelo é potencialmente um factor determinante da fixação futura da população, e por esse motivo a sua localização deveria ter tido em conta não só a vulnerabilidade da própria infraestrutura, mas principalmente o efeito na evolução da exposição da população. Desse ponto de vista, os manifestos problemas associados à fraca qualidade da água podem ser uma oportunidade para corrigir essa escolha. Com efeito, é sabido há várias décadas que o aquífero existente a algumas centenas de metros de profundidade na Chã das Caldeiras é altamente mineralizado devido à permanente emanação de gases vulcânicos através da caldeira. Surpreendentemente, não tem sido explorada na Chã das Caldeiras a abertura de túneis horizontais para captação de água no interior do maciço rochoso da bordeira. A tímida experiência da galeria de Boca Fonte (próximo da Portela), com cerca de 15m escavados no início do séc. 20, parece mostrar que esse é o caminho para o abastecimento de água de qualidade na Chã das Caldeiras. Haja em vista o sucesso que teve nos anos 80 do século passado a abertura da galeria da Fajã em São Nicolau, com 200 metros de comprimento. E não se receie que a exploração de água em altitude afecte os poços e nascentes que existem perto do nível do mar: segundo um estudo levado a cabo pelos Serviços Ggeológicos dos Estados Unidos[2], cerca de 99% da água que se infiltra nas terras altas acaba por perder-se para o oceano através de nascentes submarinas. A exploração de água através de túneis horizontais na bordeira permitiria colocar essas importantes infraestruturas fora do alcance das escoadas de lava, uma regra que deveria ser verificada em todas as instalações de natureza industrial na Chã das Caldeiras.
Na fronteira entre a Portela e a Bangaeira, o bar Ramiro foi reabilitado, sob coordenação da M_EIA. No seu interior, entre as paredes calcinadas pela visita da lava, vê-se agora uma pequena biblioteca, mas continua a reinar o Manecom. O pátio exterior permite um convívio mais desafogado, mas os filhos e netos do inolvidável Sr. Djonzinho asseguram a continuidade das fabulosas jam sessions musicais. No lado poente do pátio, um arco de pedra sustém o amplexo da escoada de lava, autêntico monumento à resiliência dos homens e mulheres da Chã, que dia a dia proclamam ao vulcão: “queremos o chão que é teu!”. Possa este exemplo, imbuído de caboverdianidade e pleno de sensibilidade, inspirar a reabilitação de toda a Chã das Caldeiras.
[1] Jenkins, S., Spence, R., Fonseca, J., Solidum, R. and Wilson, T. (2014). Volcanic risk assessment: Quantifying physical vulnerability in the built environment. Journal of Volcanology and Geothermal Research, 276, p. 105.
Jenkins, S., Day, S., Faria, B.V.E. and Fonseca, J.F.B.D. (2017). Damage from lava flows: insights from the 2014–2015 eruption of Fogo, Cape Verde, Journal of Applied Volcanology (Society and Volcanoes) 6(6)
- 1)[2]Heilweil, V.M., Earle, J.D., Cederberg, J.R., Messer, M.M., Jorgensen, B.E., Verstraeten, E.M., Moura, M.A., Querido, A., Spencer, F. e Osório, T., (2006). Evaluation of Baseline Ground-Water Conditions in the Mosteiros, Ribeira Paul, and Ribeira Fajã Basins, Republic of Cape Verde, West Africa, 2005-06, Scientific Investigations Report 2006-5207, United States Geological Survey, Menlo Park, USA
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1039 de 27 de Outubro de 2021.