… da partilha
Naturalmente que a palavra-estatuto “Poeta” pode acarretar uma dose de responsabilidade que sobretudo os que escrevem para partilhar os seus sentires possam ter algum tipo de humildade em receber tamanho galardão.
Contudo, a poesia, assim como a música, não será em instância última baseada na palavra acima focada: partilha? Não fará algum sentido chamarmos poeta (também) a quem partilha poemas e sentires? Creio que a própria Poesia não se importa de adotar rapidamente como seus aliados, quem a partilha …
Pois foi o que aconteceu na referida noite.
Partilha – sobretudo partilha que começou no projecto apresentado e terminou…para já - na noite no PCIL, onde se contou e cantou o disco.
… do enamorar
A data escolhida para o referido momento foi o fim-de-semana que antecedia o dia da amizade/amor. Ora, naturalmente que só poderia assim ser: um palco que se sobrepunha ao calendário, numa ligação estreita ao dia em questão. Afinal não é sempre que a poesia se enamora pela música e juntas se transformam num estado que só os poetas, compositores e músicos conseguem definir – a ALMA.
… d(a)o ALMA
Este foi um disco que se propôs enaltecer os músicos, num conjunto de variantes e géneros musicais onde 13 pedaços contruíram um todo, onde 13 poemas musicados traduziram a alma Cabo-verdiana e a sonoridade nossa e dos nossos.
Na verdade, para lá se chegar, tudo foi cuidado – ora de forma planeada, ora por conta de um certo “alinhamento das estrelas” conforme referiu um dos músicos do álbum, o Carlão.
Um quadro era montado pelo artista Hugo Meliço quando foi pedido que definisse a palavra ALMA. A partir do nosso panu di téra, juntou-lhe o seu pensar e fez nascer a imagem que deu origem à capa. Ao mesmo tempo que Hugo definia ALMA na sua tela, 20 poemas eram distribuídos a um grupo de músicos e compositores para que os musicassem/interpretassem … Ainda nesse tempo um grupo de pessoas…de crianças a escritores … de artistas a vendedores ambulantes definiam em filmagens o que era ALMA.
Tudo acontecia no mesmo efervescer …
Assim, durante tal caminhada em tempo emocional, os compositores compuseram suas músicas, os músicos escolheram as notas, e a criança definia ALMA num vídeo que abriu os momentos de apresentação. Sim, na verdade, onde as crianças chegam, o Poeta não chega …
Passo a passo, nota a nota, palavra a palavra ia-se erguendo o disco ALMA – o tal que traduzia o enamorar da poesia pela música.
ALMA é um álbum, praticamente um movimento cultural, no qual se pretendeu que vários artistas cantassem e contassem a poesia de José Maria Neves – num expressar da identidade da alma Cabo-verdiana.
O nome Alma vem de uma das músicas (composta por Antero Simas), palavra feliz para expressar tudo o que foi produzido, tanto nas letras, como poemas e música.
Como nasceu o álbum ALMA?
Por entre versos e estrofes que se foram soltando da alma de José Maria Neves sem pretensões de serem publicados, houve músicos que notaram musicalidade impregnada nos versos escritos. A ideia foi partilhada com uma equipa de produção que, para além do valor musical, identificaram valor imagético num contado que poderia facilmente ser cantado.
E assim foi. Das ideias às escolhas dos músicos que aceitando foram também acrescentando pedacinhos das suas almas; foi provavelmente conseguido o que se pretendia: a exaltação da arte através de um dos seus pilares – A Música/Poesia.
O álbum expressa um pouco um percurso de vida, os momentos que vivemos, o projectar da vida no futuro, o amor, a amizade, o que nos leva a sonhar e criar.
Os poemas, todos escritos em crioulo cabo-verdiano, foram musicados por compositores tão reconhecidos como Antero Simas, Zeca Nha di Reinalda, Mário Lúcio, Kaku Alves, João Nobre, Khaly Angel e Blackstar.
De Nancy Vieira a Beto Dias, passando pelo ritmo de Grace Évora, a grandiosidade de Zéca di Nha Reinalda, pela cantora escolhida este ano para os palcos da WOMAX – Neuza , a alegria de Arlindo Rodrigues, parte do grupo Simentera que temos sempre guardado na nossa memória musical: as vozes de Teté Alhinho, Teresinha Araujo , Lena França, Quim Bettencourt e Body, a paixão pela nossa tradição representada por Nhonhô Hopffer, a nova geração com Khaly Angel, até a irreverência da nova juventude com Blackstar Ana Lisboa e Zubikilla Spencer … um espetáculo que foi a demostração do álbum que ainda conta com os nomes de Mário Lúcio, Carlão (da Weasel) e Zerui Depina. A produção musical misturou duas visões: Kaku Alves e Khaly Angel. A produção artística coube a Paulo Lobo Linhares.
… por que é sempre essencial alarmo-nos?
Quando levantamos a nossa alma, o nosso espírito, estamos a levantar a nossa vida.
Ahhh, à pergunta da criança que abriu este texto, a mãe respondeu com naturalidade: “sim filha, pode ser poeta porque os poetas podem ser o que quiserem” …
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1056 de 23 de Fevereiro de 2022.