Com efeito, ter estado presente no Festival de Morna nos dias 8 e 9 do corrente mês, realizado na vila da Praia Branca, concelho do Tarrafal de São Nicolau, trouxe à baila aspetos cognitivos, afetivos e socioculturais que remetam para a minha infância, nesta que como cantou um dos seus mais ilustres filhos, Paulino Vieira, “Praia Branca terra ondé kum nascé; ondé kum brinca; brinca txitxada txitxe”.
O festival, que se encontra na sua VIII edição, e depois de um interregno, de dois anos, devido às vicissitudes sanitárias, encontra-se totalmente consolidado. Atualmente subsidiada pela Casa da Morna Sodade, transformou-se num produto turístico por excelência cujos impactos positivos hão de se fazer sentir a curto prazo.
O Evento contou com representantes de vários municípios integrando vozes conhecidas da praça pública, entre os quais o Maninho Almeida, Arlindo Rodrigues, Juary Livramento, sem esquecer o padrinho do Festival Nhelas Spencer, mas também revelando vozes doces e melódicas como a da Viviane Gomes, Sara Teixeira ou Zuleica Rosário. Igualmente, foi recheado de aventuras onde não faltaram convívios, tocatinas e serenatas, que em muito contribuiu para reforçar os laços de amizade, que une esta comunidade de músicos, e não só.
A despeito do ambiente alegre, quase a roçar a boémia, o encontro também contou com uma secção solene no qual foi inaugurado um troço de estrada e, ato contínuo, uma palestra na vila da Praia Branca. A minha comunicação intitulada “O universo Feminino na Morna: das Cantadeiras à Cesária Évora”, estruturou-se em três partes:
Iniciei abordando o papel das mulheres como rainhas e donas da morna. A própria questão terminológica, não obstante teses que apontam para um sentido oposto, nomeadamente do poeta João Lopes, Gabriel Mariano ou Vasco Martins, aquela que me parece mais verosímil foi a hipótese levantada por Baltazar Lopes da Silva, que sugere a feminização do adjetivo morno. E se tivermos em consideração os ritmos que estão na génese da morna como o landum ou como asseverou Carlos Gonçalves os resquícios do batuque que a proto morna carrega, é como que «deitar água na fervura», desacelerando-a deixando-a num ritmo mais lento. Outrossim a morna “Brada Maria”, que se convencionou como a mais antiga, dado a erudição na escrita que carrega, só pode ter sido escrita por uma mulher com um grau de instrução muito acima da média para os padrões da época. Eugénio Tavares ao fazer a recolha, desta morna na ilha da Boavista situou-a na primeira metade do século XIX. Ou seja, esta morna é contemporânea de Antónia Pusich, a primeira mulher escritora cabo-verdiana, pianista e compositora. Sendo hipotética essa correlação, contudo, não deixa de ser de todo plausível atribuir a autoria da mesma a Antónia Pusich.
É sobejamente conhecido que a morna teve origem na Boavista no contexto das cantigas de trabalho destacando as Lavandadeiras e, atrevo-me a acrescentar as Carpideiras. Nesta época a morna era cantada por uma mulher e logo de seguida era respondida em coro, sem instrumentalização ao estilo do finaçon ou do colá presentes nas várias manifestações culturais existentes em Cabo Verde como demonstrou Moaçyr Rodrigues.
Se nesta primeira fase da morna o denominador comum eram as mulheres, esta sofreu paulatinamente, uma inversão dos polos, que na falta de uma expressão melhor denominei-a de «masculinizaçao da morna». Esta asserção estriba-se em dois fatores que considero serem determinantes: A primeira foi o aparecimento dos compositores/trovadores onde afiguram nomes incontornáveis da morna como Eugénio Tavares e B. Leza, e os outros que se seguiram. Doravante as composições deixam de ter o caracter espontâneo, improvisadoras e satíricas, passando a ser de natureza mais lírica e passional. Por outro lado, a morna que se estruturava no estilo canto/resposta viu-se inundada de instrumentos como o violão a viola o violino e, mais tarde, o cavaquinho.
Com isto não se quer afirmar que elas deixam de ser parte ativa na morna visto que como veremos pelo poema que trago aqui sempre houve mulheres instrumentistas, fazendo jus ao arquétipo das mulheres do século XIX e inícios do século XX que deveriam saber falar francês e tocar piano! No entanto elas deixam de ser autoras e detentoras exclusivas da morna e passam a ser as musas que inspiravam os compositores. Nhelas Spencer rompeu um pouco com esta linha ao colocar na pele da mulher – eu feminino – com a famosa morna “desilusão dum amdjer” um pouco à semelhança das composições “sodade tem pena de mim” ou “amdjer ca bitche”, do mesmo autor.
Na década de oitenta do século passado e sustentada nas cantoras como Titina, Sãozinha, Celina Pereira ou Gardénia Benrós as mulheres começam a reafirmar o seu papel na morna. Estas intérpretes são as precursoras da diva Cesária Évora que abriu portas à morna aos circuitos da World Music, possibilitando, sobremaneira, a sua elevação a Património Imaterial da Humanidade.
Terminei a minha intervenção deixando um conjunto de desafios às novas gerações femininas. Se no plano das intérpretes elas se colocam como as verdadeiras guardiãs da música tradicional cabo-verdiana, com enfoque na morna, quais sejam: Cremilda Medina, Lucibela, Solange Cesarovna, Assol Garcia, Jenifer Solidade, Nancy Vieira entre outras, já no campo de compositoras, instrumentistas ou investigadoras deste género há um claro desnivelamentoque deve ser colmatado a breve trecho, para melhor promover o empoderamento feminino.
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Nhô Lela
A Alda Duarte Almeida
Quando tocas no piano,
Esta morna deliciosa,
Como as crioulas ardentes
E, com elas, voluptuosa,
Cuido ouvir as harmonias,
Ideais e cadenciadas.
Dalguma lira afinada
Pelos anjos, pelas fadas!
Talvez que a sombra querida,
Do teu pai alguma vez
Te segredasse os encantos
Dessa música; Talvez
Que as harmonias dispersas
Da sua lira divina
Revivam hoje nos sons
Da tua voz argentina…
Sob os teus dedos fusados
Passa um frémito de dor…
E a tristeza que isso encerra
É tamanha, que a melhor,
A mais sensitiva parte
Do meu ser vai enlevada
Na deliciosa magia
Da morna bela, inspiradora.
É que a alma Caboverdiana
Se traduz nestes cantares,
Pungentes como a desgraça
Que invadiu os nossos lares.
Deixa, pois, Mozard, Bethoven,
Esses deuses da Harmonia,
Toca, toca-me esta morna,
Feita de amor e poesia!
Maneco.
Jornal O Mindelense
Julho,1913
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1065 de 27 de Abril de 2022.