Por causa da grande interculturalidade, que é vivida intensamente pelas pessoas em todo o lado e se traduz na circulação muito mais rápida da informação musical, hoje, é expetável, cada vez menos, que a música, em pleno contexto de redes digitais, se desenvolva num espaço fechado, sem janelas para o mundo por onde, aliás, entram as mais variadas influências. A despeito da tendência hegemónica dos processos de globalização económica e cultural, têm-se afirmado, outrossim, um pouco por toda a parte, e, nomeadamente, em Cabo Verde, movimentos de consolidação, conservação e renascimento de determinadas tradições, num interessante jogo de forças no terreno absolutamente contraditórias, umas no sentido da tendência para a diluição das fronteiras das tradições que, em todo o caso, serão sempre instáveis e mutantes, e outras no sentido do seu fortalecimento.
Seja como for, independentemente de o jogo de forças no terreno beneficiar ou não a dita ala mais tradicionalista e conservadora da música, a receção dos conteúdos culturais, em geral, nunca é homogénea, porque, em última análise, depende dos perfis sociais e, desde logo, sociológicos, dos contextos, das circunstâncias concretas dos recetores e dos grupos de recetores, das tradições e, ainda, dos processos de socialização. Daí que a mesma forma cultural, dentro do território nacional, tenha acolhimentos ou receções diferenciadas, em razão, basicamente, das caraterísticas diferenciadas das populações, dito de outro modo, a apropriação dos géneros e expressões musicais cabo-verdianos não é, necessariamente, igual em todos cantos do país arquipelágico. De facto, por causa da incontornável hegemonia da globalização, hoje, mais do que nunca, as socializações e os gostos musicais são múltiplos e não uniformes.
Perante, pois, a sua disseminação assimétrica mais ou menos rápida, o acolhimento e o impacto das formais culturais, ditados, em parte, pelo grau de homogeneidade das populações recetoras e, ainda, pela natureza e complexificação das estruturas socias respetivas, serão mais ou menos apropriados em certos lugares do que noutros. Daí a necessidade imperiosa do conhecimento prévio e cada vez mais rigoroso das formas culturais, no seu sentido mais lato, mormente naquelas situações em que, particularmente, certos géneros ou expressões musicas, na sua qualidade de património cultural imaterial na sociedade, corram perigo de desaparecimento, ou extinção. Neste sentido e na perspetiva da sua valorização, a Conferência Geral das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, adiante designadas por “UNESCO”, reunida em Paris, de 29 de setembro a 17 de outubro de 2003, na sua trigésima segunda sessão, adotou a Convenção para a salvaguarda do património cultural imaterial, que recomenda a cada Estado Parte, na alínea c) do artigo 13º “encorajar estudos científicos, técnicos e artísticos, bem como metodologias de pesquisa para uma salvaguarda eficaz do património cultural imaterial, em especial, do património cultural imaterial em perigo”.
No caso concreto da música cabo-verdiana, que se inscreve, perfeitamente, no conceito de “património cultural imaterial” tal como definido pela UNESCO, no número 1 do seu artigo 2º, entendido como um conjunto de práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões associados, necessariamente, a instrumentos, objetos, artefactos e espaços culturais que os suportam, ela deve ser devidamente investigada, conquanto não corra perigo de desaparecimento ou extinção, através de uma linha de investigação própria. Em rigor, esta incursão rápida não se propõe, aqui e agora, a definição de uma linha concreta de investigação sobre a música cabo-verdiana, mas tão somente aponta caminhos futuros para a formatação e construção de uma linha de pesquisa, na área em análise, bem articulada, consistente, organizada, e alicerçada em contributos, subsídios e inputs provenientes das mais diversas áreas do conhecimento científico e, naturalmente, da própria comunidade musical.
Na procura do conhecimento e de consensos na área da investigação musical, em especial, não há, à partida, entendo eu, receitas, ou fórmulas pré-concebidas, é preciso debater ideias à procura da abertura de horizontes, sinergias e colaborações frutuosas, institucionais e não institucionais, que dêem novo impulso à música cabo-verdiana, numa nova largada. Do ponto de vista estritamente concetual, pergunto-me, afinal, o que é uma linha de investigação ou de pesquisa? No momento em que a morna, considerada um dos maiores géneros identitários nacionais, consegue, por mérito próprio, ascender ao estatuto de património cultural imaterial da humanidade, justifica-se ou não uma linha de investigação sobre a música cabo-verdiana? Em caso afirmativo, que condimentos teria essa linha? Seja ela qual for, a investigação sobre a música comporta várias áreas temáticas aglutinadoras e abrangentes, dimensões analíticas, metodologias, estratégias e projetos adequados, que se enquadram numa linha de pesquisa constante, coerente e bem articulada, tanto quanto possível.
Assim sendo, quando é que se pode falar, com propriedade, de investigação sobre a música cabo-verdiana, ou seja, quando é que aparecem os primeiros estudos de investigação propriamente ditos? Com efeito, existem vários estudos sobre a música cabo-verdiana, sobretudo nos últimos trinta anos, que se enquadram, perfeitamente, dentro do conceito de investigação, embora, na generalidade, se caraterizem pela sua dispersão, fragmentação, falta de sistematização e de constância no tempo. Todavia, seja qual for o alcance dessas investigações publicadas em livros ou Revistas, impõe-se, de forma muito concisa e rápida, uma incursão de cunho histórico pelos vários artigos de opinião dispersos em periódicos da época relacionados com a música cabo-verdiana, que nos permita entender, essencialmente, em matéria de investigação, donde teremos partida, onde nos encontramos e para onde vamos.
Se bem que não constituam investigação na verdadeira aceção do conceito, na avaliação retrospetiva da música cabo-verdiana. não se pode pôr de lado, sobretudo a partir da primeira metade do século XIX, as diversas contribuições consagradas à morna de inteletuais cabo-verdianos da estatura de Eugénio Tavares (1930), Gabriel Mariano (1952), José Lopes (1954), Pedro Cardoso (1933), Xavier Cruz (B. Léza, 1933), Baltasar Lopes da Silva (1948, 1949, 1981), Henrique Teixeira de Sousa (1958), António Aurélio Gonçalves (em Vasco Martins, 2018) e, mais tarde, o Professor José Alves dos Reis (1984) e Félix Monteiro (1958 e 1966), estes dois últimos estudiosos já numa perspetiva de investigação de campo. À lista de tantos ilustre desbravadores da historiografia da música cabo-verdiana, particularmente do batuque e do finaçon, que, aliás, também mereceram destaque nas Revistas Claridade e Raízes, acrescentar-se-iam incursões interessantes pela morna publicadas, primeiro, pela Sociedade de Geografia de Lisboa (José Bernardo Alfama, 1825) e, mais tarde, já na década de 70 do século XX, por Manuel Ferreira (1973), ou Désiré Bonnaffoux (1978), dois investigadores que se interessaram profundamente pela cultura musical destas ilhas e pelas tradições das suas gentes.
Fim da primeira parte. Texto adaptado de uma Conferência proferida no passado dia 23 de abril, no Campus do Palmarejo Grande da Universidade de Cabo Verde.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1066 de 4 de Maio de 2022.