O normal e esperado é que já viessem de longe os actos comemorativos desta data histórica. Pelos convites que têm sido distribuídos nos últimos dias tudo indica que só a partir do dia 22 é que terão lugar alguns eventos comemorativos. E é pena porque com a evidente falta de cultura constitucional que se vem notando nos últimos tempos, designadamente no questionamento do papel dos partidos e do parlamento, nos ataques dirigidos à justiça e nos pedidos irrazoáveis dirigidos ao presidente da república, o ano de 2022 podia ter sido dedicado ao reforço da consciência cidadã via aprofundamento do conhecimento pelas pessoas dos termos do contrato social representado pela Constituição. Algo que, como está comprovado, é essencial para se ter liberdade, paz, justiça e a solidariedade tão necessária nestes tempos de crise e de incertezas.
Nem com as aulas iniciadas na segunda-feira em todo o território nacional houve aparentemente a preocupação de incluir a celebração da Constituição na primeira semana escolar enquanto parte da educação cívica dos alunos e de promoção de uma cidadania activa e participativa. Nas democracias um objectivo da escola pública é de, como escreveu no Project Syndicate o conselheiro de Guterres para a Cimeira sobre a Transformação da Educação, Leonard Garnier, enfatizar a responsabilidade cívica, a governança democrática, o respeito pela diversidade humana e um compromisso activo com o desenvolvimento sustentável para além do seu esperado papel de desenvolver as habilidades académicas de “literacia, numeracia e raciocínio científico”. Infelizmente em Cabo Verde as escolas parece que só não falham é no culto de “heróis” em linha com a velha política de “reafricanização dos espíritos” cuja última encarnação é a luta para, a todo o custo, transformar o crioulo em língua de ensino. No início do ano escolar já se viu na comunicação social como a iniciativa da introdução do crioulo no 10º ano já suplantou a procura de qualidade no ensino como tema mais importante.
O confronto de princípios e valores existente traduz muito do consenso algo precário que ainda existe à volta da Constituição. Uma fragilidade que se nota na forma tímida como é celebrada, ensinada e cultivada e que contrasta com o entusiasmo e convicção como certos sectores da sociedade se agarram a memórias, valores e práticas que se situam nas antípodas dos seus princípios. A estabilidade governativa ao longo dos trinta anos com governos de maioria absoluta tem de uma certa forma mascarado essa fragilidade que sempre acaba por fazer mossa. Nota-se isso na permanente crispação política, na tendência para a partidarização da administração pública, na postura rígida de interesses instalados que juntos dificultam reformas estruturais. O desgaste de instituições como o parlamento e o sector da justiça e as dificuldades que depois se vê se acumulando em diferentes sectores e em particular nos mais visíveis como os transportes, habitação, água e energia, mas também na falta de diversificação da economia e na sua crescente informalidade, resultam em boa medida desse estado de coisas.
Há muito que já se deveria ter ultrapassado o que ainda impede o consenso nacional à volta do contracto social que se estabeleceu em 1992. Infelizmente nem as crises sucessivas e inéditas tanto no seu escopo como nas incertezas quanto ao devir têm servido de catalisador para reflexão e acção no sentido de se criar a unidade necessária para o país fazer as reformas necessárias e avançar. Trinta anos não parece ser tempo suficiente para se olhar com distanciamento e desapaixonadamente o processo que conduziu à aprovação da Constituição em 1992.
Há quem diga que não é uma nova Constituição, mas sim a Constituição de 1980 revista. Tudo para se conformar a uma narrativa de mudança no quadro institucional que se quis impor, mas que foi furada por uma votação que resultou em maioria qualificada e que efectivamente ditou o fim do regime de partido único. No quadro da narrativa referida primeiramente não se considerou necessário eleger uma assembleia constituinte para adoptar a Constituição de um novo regime político. Quando das eleições resultou uma maioria qualificada que permitiu que uma revisão total da outra Constituição, e de facto uma nova Constituição, o partido então minoritário não votou favoravelmente. A discórdia foi lançada e iria perdurar nos anos seguintes e condicionar a emergência das novas instituições democráticas.
Em Cabo Verde diferentemente de Portugal (1976), Espanha (1978) e França (1958) e de outras democracias não houve um “bloco central” de partidos de apoio à constituição vigente. Um outro foco de potencial tensão que surgiu foi com o presidente da república que considerou os seus poderes reduzidos com a nova Constituição. Visto de longe o problema que aparentemente poderia ser de “legitimidade”, porque a nova Constituição não resultou de uma assembleia constituinte, talvez pudesse ser ultrapassado com um referendo do texto aprovado como o foi na Espanha, França e recentemente no Chile. O problema é que aqui ninguém o propôs, a dúvida ficou no ar e uma responsabilidade constitucional conjunta dos principais partidos essencial para a consolidação da democracia não foi assumida.
Em consequência, instituições foram negativamente afectadas como o Tribunal Constitucional que levou mais de 14 anos para ser instalado, o mesmo acontecendo com o Provedor de Justiça, enquanto outras como o Conselho para o Desenvolvimento Regional e o Conselho Económico e Social nunca viram a luz do dia. Também questões em sectores-chave como a defesa nacional e as forças armadas não puderam ser objecto de uma discussão aprofundada que levasse a outras opções mais consentâneas com a realidade de país arquipélago que, com os meios escassos que pode angariar, precisa ter o controlo das suas águas territoriais e capacidade de resposta a emergências diversas no seu espaço de jurisdição. Algo similar se poderia dizer do sector da justiça sobre o qual, críticas de corporativismo talvez obrigasse a rever normas que dão aos magistrados judiciais o exclusivo nos concursos para lugares no supremo tribunal de justiça, a encontrar solução mais eficaz para a inspecção judicial e a ponderar a reposição do presidente do SJT como presidente do Conselho de Magistratura Judicial.
Nestes trinta anos da Constituição uma coisa deve ficar clara: que há sinais de crise em todas as democracias e Cabo Verde não é excepção. Por todo o lado as pessoas não se sentem devidamente representadas, as desigualdades sociais têm se agravado e os partidos políticos cada vez mais se mostram incapazes de responder às expectativas e de constituir reais alternativas na governação. No ambiente de desconfiança, de incerteza e de ressentimento que tende a se desenvolver, surge o populismo, a demagogia e tendências autocráticas como uma ameaça bem real. O acesso crescente das pessoas às redes sociais formatadas como estão para incentivar o extremar dos pronunciamentos, de juntar pessoas com as mesmas ideias e fechá-las em câmaras de eco das suas posições só agrava ainda mais a situação.
A saída passa provavelmente pela convergência em questões fundamentais para se poder conviver com o dissenso e do jogo do contraditório conseguir ganhos para a colectividade. Em Cabo Verde o esforço deve ser maior porque divisões antigas não foram ultrapassadas, em parte devido à cumplicidade de sectores no Estado que ainda não alinham pelos princípios e valores constitucionais. A morte da rainha da Inglaterra e a comoção mundial que se seguiu revelou que de alguma forma a generalidade das pessoas aprecia as instituições que transmitem o sentimento de pertença e garantem a estabilidade que permite criar e inovar. Para isso, dos líderes deve-se esperar um sentido de dever e disponibilidade para o serviço público por todos referenciados como as qualidades maiores de Elisabeth II e não simples protagonismo pessoal e procura de privilégios adstritos ao exercício de cargos públicos. Neste trigésimo aniversário é a responsabilidade constitucional aí implícita que deve ser assumida por todos para se poder enfrentar o presente e o futuro com confiança.