De que me recorde, os jogos tradicionais, muito difundidos na nossa infância, eram bola, carambola, berlinde, botão, pião, pica-pau, rodeada-pau, stick-out, saltar-o-eixo, burro, quarta-parede (pi-quarta), soldado-cabo-furriel (preferência dos mocins), malha, saltar-a-corda, jogar ringue, jogo de cabra-cega, mangatchada, passar-o-anel, casamento-inglês, senhor barqueiro… (escolhidos pelas mnininhas).
A maior parte dos meus colegas era fominha por bola (eu era lofóna e, por isso, discriminado) enquanto a minha predilecção era pelo pião, jogado praticamente durante todo o ano, mas mais no dia de São Miguel Arcanjo, o dia tradicional do jogo do pião em Cabo Verde, celebrado a 29 de Setembro.
O pião
Nesse meu tempo de menino, refiro-me aos finais de 1950, 1960 (diazá na mundo, no século passado!), havia os piões importados trazidos de Portugal, vendidos em São Vicente na Loja Gaspar, Casa Leão e Casa Toi Pombinha, torneados, com algum colorido, bonitos de encher os olhos, mas que tinham pouca resistência às ferroadas dos nossos piões feitos pelos artesãos da terra, normalmente aprendizes das oficinais de marcenaria. Isso, claro está, para além de a maior parte de nós não ter dinheiro para os comprar.
Na nossa zona da Chã de Cemitério, um grande fazedor de pion era o Djêne (Eugénio Vicente Andrade, hoje proprietário da EVA Móveis, oficina de carpintaria e marcenaria no Mindelo), pequeninos e muito bons, apelidados mosquinhas de ferron, devido ao som que produziam quando rodopiavam, uma espécie de zuum-zuum. Eram vendidos a 10 e 15 tostões, rendimento que o Djêne usava para comprar material escolar e roupa de fim d’óne, tal a procura.
Outro grande fazedor de pion era o Malaquias de Nhô Jôn de Teca, da Fonte Cónego, que os produzia em diferentes tamanhos, sendo o maior conhecido como pion Nhô Fula (em referência ao atleta do Monte de grande compleição física), que custava 15$00.
Muitos meninos, contudo, faziam o seu próprio pião com madeira que talhavam toscamente, colocando nele um pedaço de ferro (um prego ou um parafuso) como ponta.
A madeira de que se fazia os melhores piões era de laranjeira e goiabeira, trazidas da ilha vizinha de Santo Antão. No caso do Djêne, recebia um pau-de-pilão de goiabeira, que os meninos ‘roubavam’ em casa, para a produção de piões. Fazia-lhes dois piões e em troca ficava com o resto do material como paga pelo trabalho de que resultavam outros quatro ou seis para vender. A ferramenta usada era uma simples faca afiada, amolada na pedra.
Ser dono de um bom pião dava algum prestígio. E éramos capazes de gastar uma tarde toda a nos divertir com o jogo do pião. Não raras vezes a prova começava em Chã de Cemitério, no nosso largo, passava pelo lado de lá, ao Largo John Miller, descia e percorria a Salina (Praça Estrela) seguindo em direcção ao mar. O jogo só terminava quando o pião que estava no chão era empurrado e maltratado até ser atirado ao caizin.
O jogo
Enrolávamos à volta do pião uma linha d’fieira (um tipo de barbante), em que uma ponta ficava presa no ferro do pião e a outra enrolada no nosso dedo. Lançado ao chão, recolhíamos rapidamente o cordel e o pião rodopiava velozmente sobre si. Fazíamos disputas entre nós para ver quem era o mais hábil no manejo do pião, no p’xada pa linha, no rodopiar do pião na palma da mão e sobre a linha por mais tempo ou apanhando-o do chão com a linha para o lançar contra os outros. Bom mesmo nisso era o Nastóce de Nha Benvinda. De fazer inveja!
As regras do jogo eram simples:
Começava-se por desenhar um círculo no chão com o dedóna do pé, de aproximadamente 15 centímetros de raio, o ‘clim’, local para onde os jogadores iam lançar o dado, de forma ordenada, previamente escolhida. A frase de abertura sacramental era clim fora, pion cobrada!
O jogador cujo pião ficava dentro do ‘clim’ depois deste girar, deixava-o ali deitado até outro perder. As regras permitiam que o jogador orientasse o pião, girando-o na palma da mão e depois atirá-lo contra o que estava no chão para tentar que este saísse do círculo, enquanto procurava evitar que o seu pião não ficasse ali preso.
O ‘pico, queimada’
O jogo do pião atingia o seu ponto alto no dia de São Miguel Arcanjo, do pic quemada (repenicada), onde os mais crescidos participavam, sobretudo pelo prazer sádico de rachar ao meio os piões mais pequenos dos companheiros.
Normalmente usavam os pion Nhô Fula, com as fieiras enroladas em ‘longa curta’ de modo a se posicionarem praticamente em cima do pião que estava no chão. O ferro era afiado na ponta para fazer maior estrago nos piões do adversário. 3 pic, quemada, São Miguel Arcanjo era o auge.
Com o advento das mídias sociais e a facilidade de conexão com os meios digitais o jogo do pião, a partir dos anos 80, praticamente desapareceu. Em 2017, um grupo de aficcionados em São Vicente pretendeu reavivar esse jogo com a realização do 1.º Campeonato de Balizinha d'Pion.
Balizinha d’Pion
Por iniciativa do jornalista Kimze Brito, visando resgatar o jogo do pião na ilha do Monte Cara, realizou-se na Praia da Laginha um Campeonato de Balizinha d'Pion. O 3.º campeonato, realizado em 2019, foi “dedicode a Zeferino Cid, figura carismática de Soncent, em especial de Monte Sossego. Na se loja é possivel incontra de tudo um pouco. E foi lá ke, pa nha alegria, un incontra há alguns anos pion à venda. Foi um regresso a nha infância ke incentivam a lança um campeonato de Balizinha d'Pion pa resgata esse jogo tradicional”, escreveu Kimze Brito a 18 de Julho de 2019 na sua página do Facebook.
Neste São Miguel Arcanjo espera-se que se cumpra a tradição em São Vicente e os piões voltem a rodopiar num pic, quemada, São Miguel Arcanjo! Quanto mais não seja, que rodopiem na nossa memória.
E gira, gira, gira… na palma das mãos passando-o de uma para outra.