A cada dia que passa, fica-nos a convicção de que se intensifica o regresso à história, como foi divisado por Robert Kagan (2009), académico norte-americano, numa contraposição académica à tese do filósofo Francis Fukuyama (1992). Os últimos acontecimentos de repercussões internacionais, teimam em mostrar que está cada vez mais afastada a tese de Fukuyama, que “profetiza(va)” o fim da história, explicada pela cessação das guerras entre nações, em razão da disseminação e assunção por todos os povos do planeta do liberalismo e da democracia.
Em nós fica a crença de que foram fortemente abalados os sonhos de um mundo de paz e sem choques entre os grandes espaços e sistemas ideológicos, potenciadoras de conflitos de elevada magnitude, de consequências disruptivas, como está a acontecer.
Isso leva-nos à convicção de que chegou ao término a fé de que a globalização, por força do liberalismo e da economia, estaria a unir e integrar os mercados das várias nações, no espaço mundial de interesses comuns, evitando, assim, guerras entre Estados, mormente entre os mais poderosos, porquanto um conflito armado de elevada magnitude não traria vantagens para nenhum dos contendores, representando, isso sim, perdas irremediáveis para todos os envolvidos e para o mundo na sua totalidade, pois poderia provocar uma dinâmica disruptiva de efeitos dramáticos e imprevisíveis para o mundo.
Tal visão do mundo e das relações entre as nações viria a ser contrariada pela crua realidade, com comportamentos que vieram a abalar drasticamente determinadas crenças, mostrando-nos que na vida internacional, infelizmente, os atores se movem por um forte egoísmo.
Assistimos a uma postura por parte de certos centros de poder que parecem estar a apostar na real politik (defesa de interesses por via da utilização da coação, muito defendida pela corrente realista das relações internacionais). É o caso da Rússia e agora da Coreia do Norte, com a sua postura agressiva em relação ao Japão e aos interesses dos EUA, na Ásia.
A invasão da Ucrânia é um forte exemplo de que estamos longe de resolver o problema da guerra, pois as causas do fenómeno são profundas, e quase que nos recusamos a olhar para elas, numa lógica de que o que vale são os meus interesses.
Com as declarações de Xi Jinping, embora não tivesse trazido grandes novidades, nos domínios militar e de defesa, a China reforça a sua ideia de fazer uso da força, “caso necessário” para resolver questões de âmbito internacional, como a que envolve Tawain, se a via pacífica, com vista a sua reunificação, não funcionar.
Caso curioso é a atitude dos líderes, no contexto da Guerra Rússia-Ucrânia, que admite a necessidade premente de a União Europeia tomar medidas estratégicas, no domínio da defesa, com o fito de aumentar a sua capacidade de resposta de forma autónoma, no quadro de uma política própria.
As intensões dessas duas entidades políticas, parece-nos ir na direção de uma política externa, fortemente apoiada no hard power, dando a ideia de estar a elevar a capacidade das forças armadas, prevendo momentos que requerem a sua utilização.
AS OPERAÇÕES NO CAMPO DE BATALHA NA UCRÂNIA
Atemo-nos, agora, no que se está a passar no campo de batalha na Ucrânia, epicentro desse terremoto cujos efeitos se fazem sentir, com vigor, em todo o mundo.
Nos últimos dias, a Ucrânia parece levar de melhor às forças invasoras. Não há dúvida de que as forças ucranianas têm reconquistado porções de terrenos significativas, mas sem conseguir ainda desalojar os militares ao serviço de Kremlin da totalidade das regiões conquistadas.
Tudo indica que continuam a chegar à Ucrânia substanciais apoios em materiais bélicos e tecnologias ao serviço da guerra, sobretudo em equipamentos de artilharia e meios eletrónicos importantes para operações militares, provenientes de países ocidentais. Pelos relatos, os meios recebidos serão de última geração, o que poderá estar a explicar, de certo modo, o aparente sucesso das tropas ucranianas.
Outro aspeto tem a ver com a superioridade numérica, em termos, de homens e mulheres ao serviço da Ucrânia, em que boa parte recebeu formação e treinamento, no exterior, o que eleva a qualidade de atuação operacional e tática das Forças Armadas Ucranianas.
Diante do ímpeto das forças de Kiev, as tropas russas invasoras têm ressentem-se e são obrigadas a retrair. A ideia com que ficamos, a partir de notícias que nos chegam, é a de que, em certos pontos das regiões ocupadas, as tropas russas têm experimentado momentos difíceis, perante a acuidade do poder de fogo ucraniano, que se vem aumentando, nas últimas semanas.
Há referências de uma eventual debandada de combatentes russos, o que poderá ser interpretado como um enfraquecimento operacional das forças de moscovo, por via da contraofensiva ucraniana.
É manifesto, no Kremlin e no seio dos aliados de Putin, um certo desconforto percebido nas críticas aos líderes militares e ao Ministro da Defesa, que já motivou a demissão e substituição de altas patentes. As críticas têm sido, entretanto, estendidas ao presidente russo por parte da ala mais dura do Kremlin, que exige ações militares mais musculadas, nessa guerra.
Um outro revés digno de menção é a explosão da emblemática e simbólica ponte de Kerch, que liga Crimeia à Rússia, tida como uma linha de comunicação muito importante para o esforço de guerra da Rússia e para o abastecimento da Crimeia a partir do solo russo. Desconhece-se até ao momento a autoria do atentado, embora o acontecimento esteja a ser efusivamente festejado pelos ucranianos.
Depois de enumerar todos esses acontecimentos no terreno, gostaríamos de chamar a atenção para a necessidade de se refrear uma certa euforia em relação aos mesmos. O que nos parece ter acontecido a um determinado momento é uma certa “rotura” no quadro da visão do Kremlin em relação à invasão, em termos operacionais e não estratégicos, pois mantém-se de pé os objetivos estratégicos, inicialmente, enunciados por Moscovo.
Perante isso, e reconhecendo o ímpeto das forças ucranianas nas operações de contraofensiva, as tropas russas foram obrigadas a recuar para linhas mais para o interior das regiões conquistadas, numa espécie de exercício de troca de espaço por tempo, detendo, no entanto, o avanço dos combatentes ucranianos, em pontos que permitem garantir a manutenção das conquistas até aí já efetivadas, compactando as tropas russas nas linhas de contato no interior dos oblasts capturados à Ucrânia.
Tudo isto, acontecendo, dentro do contexto de mobilização parcial dos reservistas e de ameaça de escalar a guerra para patamares mais perigosos, em que a utilização de vetores nucleares é apontada como uma possibilidade. Porém, não acreditamos que esteja iminente a utilização de armas nucleares por parte da Rússia, mesmo as táticas, pois estaríamos a perguntar qual era, então, o objetivo de mobilização de reservistas e sua efetiva preparação para alimentar o esforço convencional.
Assim, deve-se encarar com prudência os avanços das tropas ucranianas no quadro da aludida contraofensiva. Cantar vitória, agora, não se nos afigura razoável. A cautela torna-se um imperativo, neste contexto. Até porque não se sabe o verdadeiro impacto das conquistas das forças ucranianas do ponto de vista operacional e estratégico. Há que esperar e ver. Os próximos dias serão esclarecedores a este respeito. Por ora, a prudência deve prevalecer-se.
Aliás, os ataques russos nas últimas horas demostram que o Kremlin está decidida por uma resposta em força contra a Ucrânia. Tudo indica que Putin está a rever a sua visão operacional, o que poderá levar a uma importante redefinição da situação no terreno.
Na nossa opinião, os últimos ataques orientados para diferentes zonas do território ucraniano indiciam já uma alteração das ações no teatro das operações, alteração essa que poderá vir a acentuar-se com a decisão da entrada da Bielorrússia, na guerra, com empenhamento dos seus militares e meios, o que abriria mais uma frente de expressão operacional e estratégica importante, nesse conflito.
A situação atual é grave, e isso pode ser percebido na voz e nas palavras que não queriam sair do interior de Zelensky, na sua primeira reação a esses ataques. A confirmar isso, Biden não perdeu tempo para convidar os cidadãos norte-americanos para abandonar o território ucraniano, por meios privados. Muito recentemente, o governo chinês fez o mesmo, pedindo aos seus cidadãos a deixarem imediatamente a Ucrânia, tendo o mesmo acontecido com o Egipto.
Não cremos que Putin venha a desistir das regiões conquistadas e integradas, por processos políticos e jurídicos internos, embora polémicos aos olhos da opinião pública mundial, pela forma e o contexto em que os referendos foram realizados.
Assim como não acreditamos que a Ucrânia abre mão dessas importantes porções do seu território a favor do Kremlin. Nem tão-pouco o Ocidente, liderado pelos EUA, venha a aceitar as pretensões da Rússia. Pensamos que o impasse já está criado, o que poderá explicar o prolongar da Guerra “internacional” na Ucrânia. Poderemos, pois, estar perante a um sério obstáculo a qualquer solução diplomática para a contenda.
As pretensões de Putin de conquistar o Donbass e regiões ribeirinhas do sul da Ucrânia, ligando-as à Crimeia, tomada em 2014, mantendo o território invadido longe da OTAN, afigura-se-nos como parte do plano estratégico do antigo oficial da KGB, cujo grande sonho é o da reconstituição de uma Rússia forte e com elevado prestígio internacional, tendo como fonte de inspiração a antiga União Soviética.
AS TRÊS SAÍDAS PROVAVÉIS PARA A GUERRA
Da nossa análise, concluímos que existem, pelo menos, três saídas prováveis para o conflito armado que tem a Ucrânia como palco. Passamos a enumera-las a seguir, com uma ressalva, em relação à terceira saída, para não sermos apelidados de ingênuos. A referida probabilidade, porém, comporta um elevado grau de otimismo por parte daqueles que defendem uma Rússia, com uma democracia a funcionar nos moldes ocidentais. Na nossa opinião é muito remota, pois as condições existentes internamente não são suficientes para isso, quanto mais não seja pela tendência russa de repudiar, veementemente, tudo que vem do ocidente, em termos de valores. É algo, portanto, que se situa no domínio do wishfull thinking (pensamento desejoso).
- 1.A guerra prolonga-se, causando danos insuportáveis à Ucrânia e um desgaste profundo da opinião pública dos países aliados da Ucrânia, pelo encarecimento de vida. Esta pressiona fortemente os seus governos, com manifestações e greves, acompanhadas de violência e de grandes distúrbios nas principais urbes, desencadeados por movimentos “inorgânicos”. Este quadro a verificar-se representará uma pressão muito grande para os governantes, que se verão obrigados a deixar de apoiar a Ucrânia, a qual, por sua vez, não conseguirá continuar a sustentar o esforço de guerra, vendo-se obrigada a aceitar as condições da Rússia. O Donbass e a Crimeia passam para o domínio efetivo da Rússia, de jure e de facto, assim como algumas regiões portuárias do sul do território ucraniano. É imposto um governo pró-russo e os projetos de entrada na União Europeia e a OTAN são colocados de lado.
- 2.Com o apoio do ocidente, a Ucrânia coloca a Rússia numa situação complicadíssima, empurrando suas forças para o território russo. Perante à situação, a linha dura do Kremlin acusa ao Putin de mão leve na guerra. O novo equilíbrio de poder estabelecido em Moscovo propicia a utilização de meios nucleares táticos, fazendo a guerra entrar numa fase perigosa. É feito o lançamento de misseis com ogivas nucleares táticas, tendo como alvos pontos críticos do território ucraniano. A situação potencialmente fatal para a humanidade.
- 3.Uma revolta interna, organizada pela oposição e com forte apoio externo, leva a uma mudança de regime na Rússia. As ideias liberais e a democracia impõem-se como valores estruturantes da sociedade russa. O novo governo, rapidamente, estabelece um acordo de cessar fogo com a Ucrânia, saindo dos territórios ocupados, recebendo do ocidente fortes apoios financeiros e a garantia de uma cooperação nas áreas da ciência, e das tecnologias de ponta e militar. (Atenção à ressalva a esta probabilidade).
José da Graça, Tenente-coronel na reforma e Mestre em História, Defesa e Relações Internacionais