Na atualidade cabo-verdiana tem sido abordada, com descrição e sob o viés corretivo, a inadequação masculina a uma sociedade marcada tanto pela emasculação social do homem, com base no imaginário do opressor histórico e do irresponsável hedonista hodierno, como pelo empoderamento do feminino, legitimado pelo discurso do secular sofrimento da mulher. A escalada da violência masculina na intimidade/conjugalidade e a ressemantização da masculinidade ora como tóxica, frágil, ou positiva são indicadores dessa inadequação masculina, que não é obra do acaso.
Nas ilhas de Cabo Verde constatamos que entre 1462-1910 prevaleceu socialmente o dispositivo da aliança (que é ordenado por um equilíbrio do corpo social, donde advém o seu vínculo privilegiado com o direito; tendo como momento decisivo, a “reprodução”), e o homem foi um «corpo investido de saber/poder».
No decurso do contexto socio-histórico designado como a fase da Monarquia Absoluta (1462-1820), o homem genérico personificava o poder do Rei ausente, mas o homem concreto tinha de cumprir os requisitos da raça, da classe, e da fortuna para efetivar essa personificação. Os excessos sexuais eram a principal preocupação da regulação política e religiosa das atitudes masculinas, particularmente quando implicavam a não assunção das responsabilidades conjugais/familiares, a delapidação do património familiar, ou a prática da sodomia. O sentido da honra delimitava a autoridade que a homem reclamava como legítima, exigindo dele, como contraparte, a assunção plena das suas responsabilidades.
A Monarquia Constitucional (1820-1910) e o advento do liberalismo beneficiaram a emergência da questão da instrução pública. Consequentemente, a civilização dos costumes fixa-se como problema essencial. Por exemplo, o batuque foi sinalizado política e religiosamente como prática cultural popular imoral e nociva a construção da vivência familiar exemplar, dado que favorecia a exposição física da mulher, a sua valoração sexual pelos seus pretendentes, e a subtração dos populares das imposições que o mercado sexual formal exigia para a concretização da sua união conjugal. Igualmente nessa fase, a condição masculina destaca-se como causa de problemas sociais e torna-se imperativo a regulação jurídica dos excessos masculinos (embriaguez, bigamia, rapto feminino, homicídio passional, atentado ao pudor). A positivação desta regulação dá-se com o Código Penal de 1886.
De 1910 até o presente o homem foi sendo paulatinamente constituído como um «corpo palco de investimento do saber/poder». Progressivamente assistimos à substituição do dispositivo da aliança pelo dispositivo da sexualidade, que tem como razão de ser não o reproduzir, mas o proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos de maneira cada vez mais detalhada e controlar as populações de modo cada vez mais global.
No progressismo republicano (1910-1926) o homem cabo-verdiano sai da tutela dos poderes divinos e regalistas e passa a ser governado de maneira laica pelo Estado. A família, a par da escola, torna-se o objeto principal da luta política do republicanismo contra a hegemonia política/cultural católica herdada do monarquismo absoluto e constitucional. Foi institucionalizado o divórcio e a legalidade dos casamentos civis (Lei de Divórcio de 3 de Novembro de 1910), a igualdade de direitos no casamento entre homem e mulher, a regularização jurídica dos filhos naturais, a proteção à infância e aos idosos, e a diferenciação de estatutos em função do sexo (Leis da Família, de 25 de Dezembro de 1910). Com a Lei da Mendicidade, de 20 de julho de 1912, passou a incorrer na prisão correcional dum mês a um ano todo “aquele que se entregar à prática de vícios contra a natureza”.
Por sua vez, o Estado Novo (1933-1975) fez da moralidade cívica a condição fundamental para a produção do homem útil e dócil à sua anátomo-política. A disciplina imposta por este regime constituiu a masculinidade como problema cívico/moral. A Constituição de 1933 incumbiu o Estado de tomar todas as providências no sentido de evitar a corrupção dos costumes, deu cobertura constitucional ao confinamento e menoridade da mulher e formalizou a homossexualidade como crime. Em Cabo Verde, destacaram-se, em simultâneo, o programa de produção da mocidade católica; a constituição do arquipélago como destino de deportação de presos sodomitas condenados na Metrópole; e o reforço da autoridade moral do homem, quando este assumia a responsabilidade de ser um bom cidadão (vale dizer, senhor da sua casa e trabalhador disciplinado).
Com a biopolítica cabo-Verdiana (1975-presente) prevalece o dispositivo da sexualidade, e assistimos a derrapagem social da autoridade masculina. Os destaques da agenda revolucionária (1975-91) foram a demarcação da questão do casamento e do divórcio da moral; a dignidade institucional conferida à união de facto; a facilitação da revolução sexual em Cabo Verde; e a libertação do planeamento materno-infantil e familiar da tutela do «pai e do marido». Na primeira fase da II República de Cabo Verde (1991-2001) a questão feminina foi alocada numa estrutura estatal específica, enquanto a lei que regula a questão da violência no quadro das relações familiares e íntimas marca a segunda fase da II República de Cabo Verde (2001-2016).
Entre 1975-91 a promoção da revolução sexual gerou inquietações masculinas que seriam consideradas inconiventes (o homem ficou mudo, do contrário seria considerado um tradicionalista conservador contrarrevolucionário). Seguiu-se a letargia masculina, jocosa e condescendente, perante a emergência da problemática do género (1991-2000), dado que a democracia pluralista tornou anacrónica qualquer discussão sobre a igualdade dos cidadãos. Entre 2001-2013, assistiu-se à queda do homem cabo-verdiano do pedestal social com a despenalização da homossexualidade (2004); a penalização jurídica dos usos da violência na intimidade (2011); e a incompatibilização entre a ordenação jurídica da filiação e paternalidade irresponsável (2013).
Nos inícios de 2014 o homem foi marcado, primeiramente, como um dos «dilemas do poder», e pelas campanhas «Ami é Pai» e «Homi ki é homi ka ta bati na mulher». Configura-se no arquipélago, a partir de 2014, um programa cultural e político de modernidade sobre o género que reconstrói a masculinidade inadequada, ou não positiva, como um mal social a erradicar. Entretanto, a lógica social da satisfação das necessidades, ainda, faz do amor um investimento e, ainda, faz do homem um provedor genético e social. Igualmente, no psíquico do cabo-verdiano ser o provedor (genético e/ou social), ainda, é uma forma de validação identitária. Mas quando ele reclama a prerrogativa de determinar como exerce essa condição, surge-lhe de frente o Estado que o incita a assumir as suas responsabilidades, mas negando-lhe qualquer autoridade que possa evocar o passado.
Em suma: de forma silenciosa, Ser Homem em Cabo Verde tornou-se uma «incongruência cognitiva».
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1098 de 14 de Dezembro de 2022.