Lembro-me de um dia ter ido ao escritório dele e mal entrei no gabinete os quadros que escolheu para ter nas paredes eram muitos. Foi fácil ver que não era somente apaixonado pela arquitectura, mas também pela pintura e adivinhei logo que pela arte no seu geral.
Foi-se passando o tempo e lembro-me de um final de tarde na qual me misturava com pilhas de discos que arrumava na loja onde trabalhava em Portugal – país onde estudei – ter sido chamado, pois um compatriota meu queria falar comigo. Fui lá ter e era a arquitecto que gostava de pintura, mas nesse dia – ao saber que eu trabalhava na FNAC, foi para me apresentar o disco dele. Obviamente que já o conhecia de Cabo Verde e da amizade entre as nossas famílias, mas aos poucos ia-o conhecendo mais e mais pelo seu interior artístico. Sim, o arquitecto que gostava de pintura era também … músico.
Nesse dia, lembro-me do entusiasmo com que falava da música e em especial do seu disco. Contudo também me lembro que grande percentual emocional do que contava … o foco não terá sido no cantor, mas sim dele enquanto figura dos que a música de Cabo Verde, de Santiago e da Assomada escolheu para ser seu representante. E dúvidas não tive de duas coisas: que o arquitecto que gostava de pintura tinha-se rendido à música, respondendo ao apelo desta e que a tal entrega não ia parar por aí…
Cruzamo-nos mais vezes em Lisboa, na tal loja de música e quando regressei a Cabo Verde, num sábado de manhã no restaurante Avis, cruzamo-nos de novo. Estava o arquitecto que gostava de pintura numa mesa com o cantor Dino D’Santiago e fez questão de nos apresentar. Já nos conhecíamos, mas o entusiasmo era tal que nem eu nem o Dino insistimos muito nesse pormenor. Passamos a conhecer-nos pela emoção da apresentação.
A partir daí muitas conversas tive com o Nhonhô Hopffer, obviamente sobre música na maior parte das vezes e …o tempinho que sobrava era para me falar da sua antiga professora que fazia anos no mesmo dia que ele…a minha mãe, a qual todos os anos não falhava o telefonema a dar os parabéns. Na verdade, parabenizavam-se um ao outro com imensa alegria. Dizia-me sempre que o meu primo Luís Lobo e o Papa João Paulo II também eram aniversariantes nesse dia.
Após alguma convivência, já não tinha dúvidas que o arquitecto que gostava de pintura tinha paixão maior: a música. Não tinha dúvidas. Sim, paixão maior do que a música, só pela sua ilha, o local preciso onde nasceu e acima de tudo pela família de que tanto me falava, onde as joias da coroa eram claramente as duas filhas que tanto amava.
E a música continuou! A “arte-maior” viu que tinha no arquitecto que gostava de pintura um soldado para o seu exercito de paz e de cores sonoras.
Sempre envolvido em projectos continuou o seu caminho musical, sendo cada vez maior a sua intervenção com vista à elevação da nossa música. Fê-lo muito e de diferentes maneiras. Algumas das vezes terá deixado que a emoção ultrapassasse a razão. Mas não será isso inteiramente permitido quando falamos de um apaixonado? Sim.
Cada vez mais envolvido, enaltecia sempre a música de Cabo Verde com discussões onde tentava responder sempre e sempre. A ilha de Santiago era realçada nos seus compositores que criteriosamente escolhia para os seus álbuns e para a defesa dos seus ritmos musicais. Cá entre nós, meu querido arquitecto, houve uma altura em que a defesa era demasiadamente “forte”. Mas volto a perguntar: não será isso inteiramente permitido quando falamos de um apaixonado? Sim.
No seu último trabalho discográfico, trabalhamos juntos. O arquitecto que gostava de pintura participou no disco onde uma selecção de artistas musicou poemas de José Maria Neves. Quanta alegria sentiste nesse momento! A alegria transbordava em forma de entrega total e desmesurada.
A paixão pela arte-música fez com que o arquitecto que gostava de pintura guardasse essa parte com ele…sempre com ele e se tornasse músico apaixonado pela arte, em específico pela arte e cultura do seu Cabo Verde.
Quis o destino que Nhonhô Hopffer partisse prematuramente. Partiu, mas a musicalidade que tinha nele era tanta que se transformou em tinta musical que serviu de cores para deixar bem gravado o nome dele nas ilhas e na nossa cena musical.
Sim, partiu o arquitecto que gostava de pintura e que um dia a música resgatou para ela.
Gostava do seu povo, das suas ilhas, da família e dos amigos. Deles teve tempo (e como soube fazê-lo!) para se despedir de tudo e todos. Não gostava que se escrevesse o nome dele separado: “Paulo, não é Nho Nho, mas sim NhoNhô” … sim NhoNhô, não me esquecerei…
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1101 de 4 de Janeiro de 2023.