O significado do 13 de Janeiro

PorAmílcar Spencer Lopes,13 jan 2023 9:28

Da epopeia cabo-verdiana constam duas efemérides de primeiro plano. Uma celebra a libertação; a outra, a liberdade.

A 5 de Julho de 1975, o povo de Cabo Verde assumiu a independência política das suas ilhas, aspiração máxima de gerações de cabo-verdianos, tornada possível, primeiro e para citar apenas as causas próximas, graças à histórica criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, e aos desenvolvimentos que essa Organização Internacional conheceu entretanto, particularmente, a partir de 1960.

Segundo, pelo esforço persistente e sacrifício consequente de uma plêiade de nacionalistas que se empenharam, social e intelectualmente, numa época anterior e política e militarmente, numa fase ulterior, na consecução desse desiderato nacional, particularmente, do Movimento de Libertação Nacional concebido e liderado por Amílcar Cabral que, a partir de Conacri, desenvolveu uma luta armada, nas matas da Guiné-Bissau e uma actividade político-diplomática, no plano internacional, com vista a libertar a Guiné-Bissau e Cabo Verde, do jugo colonial.

Mais proximamente, pela “Revolução dos Cravos”, de 1974, em Portugal – potência colonizadora – acontecimento que pôs ali fim ao regime autoritário, facilitando os trâmites e procedimentos formais, do processo descolonizador então desencadeado.

O 5 de Julho é, pois, o ponto de rotura formal com a potência colonizadora e o início da existência de Cabo Verde como Estado soberano, no concerto internacional das nações.

Um parêntesis para dizer que quanto ao jugo colonial, convém anotar que certos estudiosos entendem que, no caso de Cabo Verde, não se poderá falar, com rigor, em colonização porque, estando as ilhas desabitadas ao tempo do seu achamento, não teria havido expugnação e subjugação ao domínio colonial, de populações autóctones.

A verdade, porém, é que, entre o achamento das Ilhas, no século XV e a Independência Nacional, em 1975, foram desenvolvidas, no território cabo-verdiano – entretanto povoado por europeus, na sua maioria, súbitos do Rei de Portugal, e africanos aprisionados ou comprados, como escravos, na ribeirinha costa africana – um conjunto de estruturas sociais e económicas, instituições e formas de administração próprias, a meu ver, da chamada dominação colonial.

Com o passar dos séculos e no isolamento arquipelágico, os residentes desenvolveram, entretanto, relações de convivência social que, num processo complexo e longo de reconfiguração social e construção identitária acabou por dar lugar a uma comunidade própria, com motivação diferenciada da reinol e propósitos reivindicativos, o que proporcionou uma certa consciencialização, diria, nacional, já notória por volta de 1822. Tanto assim é que, recentemente, uma conceituada historiadora afirmou que, em finais do século XVIII, Cabo Verde era já uma Nação, pronta para receber o Estado.

Estes factores endógenos conduziram os cabo-verdianos, já na primeira metade do século XX, a exigir, embora debalde, um tratamento especial e uma certa autonomia da parte de Portugal, e a prosseguir uma reivindicação independentista consequente, consumada com a Independência Nacional.

De então a esta parte, a história é recente e é conhecida:

Com a Revolução de Abril, em Portugal, em 1974, abriu-se um processo de negociação entre Portugal e Cabo Verde, com vista à auto-determinação e independência desta colónia. De um lado o Governo provisório integrado pelas forças revolucionárias portuguesas, do outro o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), força política que, a partir do seu quartel-general, na Guiné-Conacri, protagonizara uma luta armada no solo da Guiné-Bissau e uma acção político-diplomática, no plano internacional.

Assinado o Acordo de Independência e processados os trâmites ali estabelecidos, foi proclamada a República de Cabo Verde, a 5 de Julho de 1975.

Com o acto da Independência Nacional e ascensão de Cabo Verde a Estado soberano foi adotada, na reunião constitutiva da Assembleia Nacional Popular (ANP), eleita por listas únicas, organizadas e controladas pelo PAIGC, uma Lei da Organização Política do Estado (LOPE), para vigorar até à aprovação da Constituição, que, segundo aquela referida lei, deveria ser elaborada, discutida e aprovada, no prazo de 90 dias.

O Estado é, como se sabe, uma comunidade organizada. Implica a ideia de Direito; pressupõe um conjunto de regras instituídas, para regular a organização. Por outro lado, a ideia de Poder que está contida no Estado, bem como a autoridade dos governantes em concreto têm de ser um Poder e uma autoridade constituídos. Constituídos por um conjunto de normas básicas, que regulam o funcionamento do Estado, enquanto Poder Político.

A LOPE resulta, assim, da necessidade de organização provisória do Estado, até à entrada em funcionamento dos órgãos a instituir pela futura Constituição formal.

Decorridos, ultrapassados e por fim eliminados os 90 dias, a ANP acabou por aprovar, em Setembro de 1980, a primeira Constituição da República de Cabo Verde, promulgada e publicada em Outubro, para vigorar na data da primeira sessão da segunda legislatura.

A Constituição de 1980 caracterizava-se, essencialmente, por um leque muitoreduzido e circunstanciado de Direitos Fundamentais – estes, absolutamente omissos na LOPE – um sistema económico estatizado e de planificação centralizada, não separação de poderes, inexistência de pluralismo político e de liberdade de expressão, de imprensa ou de associação, e pela sujeição absoluta da sociedade e do Estado aos ditames do Partido Único, considerado “força dirigente da sociedade e do Estado”, e “luz e guia do nosso povo”. Um Estado apelidado, eufemisticamente, “de democracia nacional revolucionária”, fundado na “efectiva participação popular”, que se concretizava através das organizações de massa, a saber, milícias e tribunais populares, JAAC, OPAD, OMCV, sindicato único e outras formas de enquadramento das massas populares. A Constituição de 1980 (de inspiração soviética) vinha, assim, consagrar e reforçar o regime de Partido Único, instituído em 1975, pela LOPE.

A libertação conquistada e proclamada a 5 de Julho de 1975, não fora, afinal, portadora da liberdade almejada, pela Nação cabo-verdiana.

Com o processo de reestruturação e transparência iniciado por Gorbatchev na União Soviética e a queda do Muro de Berlim, em 1989, por um lado, na sequência do golpe de estado na Guiné-Bissau, em 1980, que ditou o fim do mito da Unidade e a transmutação do PAIGC em PAICV, e com o exacerbar das contradições da “democracia nacional revolucionária” e a falência do modelo económico instalado, por outro lado, o partido no Poder não teve outra alternativa senão fazer a fuga em frente e anunciar a abertura política, o que, após um processo algo conturbado, mas relativamente breve, possibilitou a realização de eleições livres e pluralistas, em Janeiro de 1991.

Realizadas as primeiras eleições multipartidárias, livres e democráticas, a 13 de Janeiro de 1991, contra as expectativas de muitos, saiu vencedor, com uma maioria qualificada de mais de dois terços dos votos validamente expressos, o Movimento para a Democracia (MpD).

Tal resultado era um sinal pleno e sonoro, de que uma nova ideia de Direito vingava entre nós e que era o momento certo para dotar o país de uma nova Constituição da República (CR), enformada pelos novos valores que a sociedade cabo-verdiana propunha realizar, a saber: um Estado de Direito Democrático, em que a dignidade humana fosse tida como valor absoluto, sobrepondo-se ao próprio Estado.

As eleições de 13 de Janeiro de 1991 têm assim um enorme significado: O seu resultado não é, por assim dizer, contra o programa (contingente) do Governo em função, à data, mas mais e sobretudo, contra a ordem estabelecida. Isto é, contra a Constituição de 1980, então em vigor. Visou, fundamentalmente, uma realidade social e política, a que o conteúdo da Constituição de 1980 deixara de corresponder. Foi, efectivamente, a expressão assumida e inequívoca da vontade do povo de Cabo Verde, de mudar de regime político

O 13 de Janeiro de 1991 vem, assim, legitimar a nova ideia de Direito e abrir caminho para aprovação da Constituição de 1992. Esta resulta, pois, da força elocutória da proclamação feita pelo Povo das Ilhas, nas eleições de 13 de Janeiro de 1991. Em consequência e face aos resultados eleitorais, a Assembleia eleita assumiu poderes constituintes e dotou o País de uma nova Constituição, que estivesse em conformidade com a nova ideia de direito, então proclamada.

O 5 de Julho de 1975 e o 13 de Janeiro de 1991, bem ainda o 25 de Setembro de 1992 (data da entrada em vigor da CR) são, assim, os tês momentos fundantes do Estado. Momentos em que o Povo cabo-verdiano assumiu, plenamente o seu destino, pronunciando-se, clara e soberanamente, primeiro, sobre a criação do Estado, mais tarde, sobre que tipo de Estado e, por fim, definindo e projectando um Estado constitucional de Direito Democrático. São, pois, datas nacionais de primeira grandeza, da República, e, como tal, devem ser celebradas, pública e solenemente.       

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Autoria:Amílcar Spencer Lopes,13 jan 2023 9:28

Editado porAndre Amaral  em  13 jan 2023 9:28

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