O caseiro do Governo Federal e a esquerda romântica

PorAntónio Ludgero Correia,16 jan 2023 8:12

“Quando o homem quer matar um tigre, chamam isso de desporto. Quando o tigre quer matar um homem, chamam isso de ferocidade”. Bernard Shaw

O Distrito Federal brasileiro não é um estado, estrito senso, sendo antes um território delimitado para acolher o Governo da União, seu staff de apoio e respetivos familiares, o que acaba fazendo do “Governador” do Distrito um caseiro do Governo Federal. E é fácil de entender a ideia: sendo certo que o Governo da União tem preocupações absorventes que não se compaginam com obrigações prosaicas em relação ao Distrito (como cuidar do saneamento básico, da ordem, da segurança, etc.), resulta intuitiva e prática a instalação de uma equipa para responder por tais questões. A opção pela escolha pela via de eleições de um tal “Governador”, tal qual acontece com os demais Governadores dos Estados da União, leva a que ele ache que não tem obrigações especiais em relação aos inquilinos da Esplanada dos três poderes, podendo chegar ao extremo de lavar as mãos, qual Pilatos, em relação a desmandos, quando estes inquilinos não são da sua cor política. Não será aceitável que se volte atrás e se opte pela nomeação, pelo Governo da União, de um Burgomestre para Brasília, mas será sempre tempo de rever os termos do juramento na posse do “Governador” do Distrito Federal.

Não se pretende que o “Governador” Ibaneis Rocha seja o único, ou o principal, responsável pelo ataque ao centro físico dos poderes da República. Longe disso. Há muito por explicar, desde a forma romântica como a esquerda democrática, no poder, vem encarando os desmandos que os arruaceiros, próximos de Bolsonaro, vêm praticando – um pouco por todo o território brasileiro – de finais de outubro a esta parte, até aos sacos sem fundo de recursos que seguem financiando a mole manipulada para satisfazer os instintos reacionários, populistas e totalitários dos que se acham donos do Brasil.

O presidencialismo brasileiro se viu sacudido por um certo judicialismo lá atrás, nos idos de 2014 a 2016; já antes, e depois, foi condicionado por um parlamentarismo algo exacerbado (em contraponto ao nosso parlamentarismo mitigado) protagonizado pelo conhecido “Centrão”); e hoje foi posto em causa pela turba manipulada que intenta trazer os militares para a ribalta política.

Parece não haver dúvidas que os militares, ainda que a contragosto, se assumem como integrantes de umas forças armadas republicanas, deixando órfãos os vagabundos que não aceitam os resultados das urnas, nem respeitam as instituições da República; que o “Centrão” ainda está ativo, mas creio que agora já entende que o sistema é ainda Presidencialista (apesar dos pesares) e que os seus apetites devem ser contidos adentro de limites democraticamente toleráveis; que o Supremo Tribunal Federal está vigilante, não perdendo de vista as derivas de outros integrantes do Poder Judiciário como aconteceu nos processos da “Lava Jato”.

O que fica por entender é como é que o Presidente da União, Chefe do Executivo Federal e Comandante Supremo das Forças Armadas (das três armas) vai organizar o Executivo para conviver (i) com os apetites de alguns sectores do Congresso Nacional; (ii) com a tendência (várias vezes sentida) no sentido de se judicializar a política para travar a esquerda democrática; (iii) com a ambição de titulares da autarquia do Distrito Federal (que não se sentem caseiros do Governo da União, permitindo-se fazer oposição ao mesmo, por mais absurdo que isso seja); e (iv) como resolver a questão dos órfãos do exército popular bolsonarista, sem cair na tentação de cometer excessos.

E não será um exercício diletante. A tendência de pessoas, grupos e instituições se considerarem mais importantes e mais impactantes de que os demais, não se circunscreve à República Federativa dos Estados Unidos do Brasil e à Federação dos Estados Unidos da América. Minorias que acham que são mais qualificados e que, por isso, seus votos deviam valer mais do que os da maioria (que consideram carneirada); instituições que se pretendem mais proeminentes do que as demais, perdendo de vista que o estado de direito vale o que valem as suas instituições – TODAS; poderes que não perdem nenhuma oportunidade para se mostrarem vitais para o sistema, em desprimor dos demais; executivos que caem na tentação do QUERO, POSSO E MANDO baseado no facto de terem merecido a confiança da maioria do eleitorado; podem ser encontrados um pouco por todo o mundo, mesmo lá onde se bate no peito e se grita “somos a maior democracia do mundo”, “somos o exemplo de democracia no nosso continente”, etc.

Daí que, se é certo que o executivo brasileiro precisa usar luvas de pelica para tratar a questão, não será menos certo que será preciso deixar de lado algum romantismo na condução dos destinos do país de dimensões continentais que é o Brasil. Hay que enduricir e sin ternura.

Por exemplo, a amostra do que essa mole humana era capaz de fazer ficou demonstrado no dia da diplomação do Presidente eleito no Congresso Nacional e o facto de não terem atacado o carro descoberto em que Lula viajou do Congresso para o Palácio do Planalto se deveu apenas a algum respeito pela presença dos Chefes de Estado e Altos Dignatários estrangeiros. O quebra-quebra de 08 de janeiro era, portanto, expectável. Não iriam abandonar os acampamentos à frente dos quartéis militares e seguir para casa com o rabinho entre as pernas.

Assumindo o poder e deixando os acampamentos de pé, com militares quase que tendo que pedir licença para entrar e sair dos respetivos quartéis; nada fazendo para cortar o cordão (ou cordões, que sei eu?!) umbilical que passava nutrientes a essa gente toda; acreditando que com paz & amor tudo se resolveria de per si; é de um romantismo tão ingénuo quão atroz. “LULINHA, PAZ & AMOR” foi de outro tempo. Não é – e nunca será – a mesma coisa o render da guarda de um gentleman como o FHC e de um bronco como Jair Messias Bolsonaro.

Ter um caseiro que fez campanha contra o Presidente eleito a cuidar da nossa segurança, do saneamento do nosso entorno, confiar-lhe a nossa integridade física e a integridade do centro físico do poder da União e esperar que ele aja com lisura é de um romantismo que raia a inconsequência.

Acreditar que pessoas, milhares de pessoas, que se instalaram em acampamentos, se alimentando, bebendo e comendo bem (alguns até engordaram), fazendo higiene em hotéis das redondezas, por mais de 70 dias, estariam a expensas próprias parece brincadeira. Manter essas pessoas mobilizadas e disponíveis (inclusive para atacar instituições da República) tem custos. Avultados. E quem estaria assumindo esses custos? Alguém buscou conhecer esses beneméritos? O executivo, ao não acionar a inteligentsia (a Polícia Federal, a Polícia Civil, etc.) para identificar os financiadores do “assalto ao poder” foi de um laxismo inaceitável.

Agora, trancas à porta depois da casa assaltada. Dirão antes tarde do que nunca. Mas fica um travo amargo. Um Presidente que se viu trancafiado por quase 20 meses; que viu sua pupila ser destronada, por manobras escabrosas (a Presidenta Dilma não roubou nada!!!, ao contrário dos seus julgadores no Congresso Nacional) no meio do segundo mandato; tinha o dever e a obrigação de ser desconfiado e, principalmente, precavido. No meio de tudo isso, por onde andou o Ministro Responsável pela Segurança Institucional? Não creio que a intervenção federal no Distrito Federal, durando até 31 de janeiro próximo, seja a solução para a paz e a tranquilidade que o Executivo da União e seu Chefe precisam para dar conta dos ingentes desafios que têm pela frente. E o pior é que agora toda a ação mais musculada que venha a acontecer ficará sob o escrutínio de meio mundo e os detratores do Presidente Lula estarão mais do que prontos para o julgar e condenar.

Mas faria todo o sentido o equacionamento de uma solução mais saudável e mais segura para a autarquia do Distrito Federal. Um burgomestre nomeado pelo Governo da União? Ou uma nova fórmula de juramento, no ato de posse? Caseiro é caseiro, né?

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1102 de 11 de Janeiro de 2023. 

 

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Autoria:António Ludgero Correia,16 jan 2023 8:12

Editado porAndre Amaral  em  16 jan 2023 8:12

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