Foi, pois, com satisfação e curiosidade, que tomei conhecimento da publicação do livro de Maria de Lurdes Caldas, Antónia Pusich – Uma Mulher Invulgar. Coloquei de lado outras leituras e afazeres, e comecei a ler o livro, em jeito de empreitada. Não obstante possuir pouco mais de quatrocentas páginas, lê-se bem, como um romance que nos prende pela noite dentro e assume-se como mais forte do que o sono. E o resultado não podia ser mais gratificante!
Maria de Lurdes Caldas, com esta obra, dá-nos a conhecer Antónia Pusich, filha de António Pusich, croata de nascença, que a 1 de Fevereiro de 1791, foi nomeado segundo-tenente da Armada Portuguesa e naturalizou-se português, tendo sido promovido a capitão-de-fragata graduado e nomeado intendente-geral da Marinha de Cabo Verde, a 18 de Março de 1801.
Foi residir em São Nicolau, pelas razões explicadas no livro, e na Ribeira Brava, nasceu Antónia, no dia 1 de Outubro de 1805, segundo uns, mas que a autora põe em dúvida, com os argumentos que apresenta, situando-o, entre 1804 e 1805. Ainda segundo a mesma, para assinalar o nascimento da filha, António Pusich lançou a primeira pedra de uma capela com a invocação a Santo António dos Navegantes, no porto de São Jorge (ou da Preguiça).
Antónia tinha 5 ou 6 anos quando deixou as Ilhas, com o cessar de funções de António Pusich, mas regressou depois, quando o Pai foi nomeado Governador de Cabo Verde, a 6 de Fevereiro de 1818, e viajou para Santiago para tomar posse, como era habitual, tendo permanecido no cargo pouco mais de dois anos.
A revolução de 1820 e os problemas políticos daí decorrentes, levaram o Governador a prestar juramento das Bases da Constituição, no dia 1 de Maio de 1821, na Câmara Municipal da Praia, a contragosto, mas de pouco lhe serviu, pois, a Câmara da Capital comunicou-lhe que já não era Governador e tinha sido eleita uma junta que passaria a assegurar as suas funções.
Antónia Pusich, que contava então 16 ou 17 anos, seguiu de perto os problemas políticos ocorridos na Praia, e não só, até porque secretariava o Pai. Acompanhou toda a saga familiar ocorrida no regresso a Lisboa, passando pelo Rio de Janeiro, onde era suposto encontrar o Rei D. João VI.
Segundo a autora, os dados disponíveis permitem «situar temporal e geograficamente o início da produção poética de Antónia: contava entre 17 a 19 anos, já era casada e foi na Praia, em Cabo Verde, que debutou» e, enquanto teve saúde e forças, não parou, tendo publicado os seus poemas nos periódicos da época, encontrando-se na imprensa, a partir de 1841, vários textos seus.
Escreve Maria de Lurdes Caldas, que «o ano de 1849 foi fundamental – para Antónia Gertrudes e para o jornalismo em Portugal. Antónia fundou a sua primeira folha, e a imprensa periódica portuguesa registou o primeiro título fundado, possuído, dirigido e redigido por uma mulher», A Assembléa Litteraria, jornal d’instrução, precisando que não foi a primeira jornalista, mas sim, a primeira mulher a fundar, dirigir e escrever um periódico, assumindo-se desde o princípio como sua proprietária, directora e redactora.
Para além de uma actividade literária intensa, temas como a protecção das crianças, o aleitamento materno, a instrução das raparigas, a religião, o lugar da mulher na sociedade, designadamente a sua independência económica, ocuparam a sua mente e batia-se nas páginas dos seus jornais por estas causas, partindo da ideia de a escrita ser serviço público de primeira necessidade e que a literatura era das «maiores glorias nacionais», sendo que «em meados dos anos quarenta, Antónia Gertrudes era uma mulher com poder e que sabia que o detinha».
A sua vida pessoal e familiar não foi fácil, pois, a família estava do lado perdedor da guerra civil portuguesa e sofreu na pele as suas consequências negativas; três casamentos na sua vida, ficou viúva pela primeira vez muito cedo, mas as dificuldades não a deixaram depor as armas. Sentia-se cabo-verdiana e orgulhosa da sua naturalidade, tendo criticado o abandono a que o Reino votava as ilhas de Cabo Verde. Faleceu no dia 5 de Outubro de 1883, com 78 ou 79 anos, e não faltaram penetrantes elogios fúnebres.
Em jeito de conclusão, Maria de Lurdes Caldas remata as suas considerações, com esta prosa: «Antónia sofreu a erosão dos anos, dos embaraços financeiros, das batalhas burocráticas, de algumas derrotas políticas, da perda de muitos familiares próximos, da doença e da cegueira, que, já muito próximo do final, a constrangeu a pousar a pena. Se a vida não lhe foi fácil, confortava-a a confiança na almejada consagração na eternidade, ciente que estava de que, um grande génio cahido na adversidade, é semelhante ao sol que declina: esconde-se no presente e brilha no porvir».
Esta obra é extensa, profunda e, às vezes, minuciosa. O seu prefaciador, Nikita Talan, conhecedor da matéria, escreveu que estamos perante uma biografia romanceada, uma monografia monumental.
A leitura deste livro deixa claro que Antónia Pusich foi uma mulher invulgar; também não restam dúvidas de que Maria de Lurdes Caldas tem tido uma produção científica notável, estimulante e iluminante para a história luso-cabo-verdiana. Se em 2019, publicou Os Medina e Vasconcelos – História de uma Família, em três volumes; se em Novembro de 2022, brindou-nos com Antónia Pusich – Uma Mulher Invulgar, em Dezembro do mesmo ano, publicou uma outra notável obra, A Implantação da República em Cabo Verde – Um Abalo de Grande Magnitude, com a chancela da Livraria Pedro Cardoso, cuja venda na Praia está prevista para a segunda quinzena de Fevereiro de 2023.
Se continuar com este ritmo de produção, só possível aos que investigam muito, com paixão e madura reflexão, Maria de Lurdes Caldas, numa perspectiva luso-cabo-verdiana, abre alas para ser considerada uma historiadora invulgar. A autora está de parabéns. Não é todos os dias que se escreve uma obra com esta profundidade, enquadrando a biografada na sua época, do ponto de vista político, social e cultural.
Agora que ficamos a conhecer a vida de Antónia Pusich, o passo natural é estudarmos a sua obra e, a este propósito, a autora coloca à nossa disposição um manancial muito grande de informações, que facilita o trabalho investigativo dos que querem trilhar este caminho.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1104 de 25 de Janeiro de 2023.