A Autonomia do Direito Municipal Cabo-verdiano

PorJúlio Lopes dos Reis,6 fev 2023 8:20

Júlio Lopes dos Reis - PhD, Presidente da Câmara Municipal do Sal
Júlio Lopes dos Reis - PhD, Presidente da Câmara Municipal do Sal

O Jurisconsulto Mário Silva, já com nome estabelecido no cenário da ciência jurídica em Cabo Verde e ao nível da lusofonia, fez publicar a sua tão esperada obra intitulada o ‘Direito Municipal Cabo-verdiano’, fazendo questão, e muito bem, de realizar sessões de apresentação pública em todas as ilhas.

Embora sem a devida preparação, coube a nós o privilégio de aceitar o convite irrecusável e fazer a apresentação pública na ilha do Sal. Pelo título genérico, pode-se aferir a relevância do tema e a complexidade das problemáticas e dos tópicos abordados.

Todavia, para se qualificar essa obra, esta investigação, importa analisar a sua qualidade técnica. O que se consegue pelo cumprimento dos requisitos e pressupostos próprios da investigação na ciência do direito. De modo que é nosso propósito apresentar alguns argumentos que nos permitem relevar a qualidade do livro, destacando algumas considerações de ordem metodológica e referências quanto ao conteúdo.

1. Qualidade metodológica

I. No concernente à qualidade metodológica,importa sublinhar que se trata de uma obra no domínio das ciências jurídicos (ciência formal, aplicada, e normativa – dever ser ) porquanto o objecto corresponde às normas jurídicas, ordenamento do direito municipal. O que move o autor é análise e procura de novas soluções normativas reguladoras do direito municipal cabo-verdiano.

Um primeiro elemento de valor é que esta pesquisa não foi realizada numa óptica descritiva. Aliás, se fosse, o trabalho não teria a qualidade que tem. O que atribui a qualidade cientifica é aplicação adequada do método jurídico no sentido de problematizar e não descrever; de escolher e analisar temas, tópicos e problemáticas referentes ao direito municipal e fazendo emergir questões e problemas numa perspectiva de soluções normativas. Acrescenta-se que toda essa problematização ocorre num quadro de inovação e de originalidade da construção teórica ( e nunca descrição) concernente a um tema relevante. Refira-se que a pesquisa surge num momento especial de revisão de vários diplomas do ordenamento jurídico municipal, com destaque para o Estatuto dos Municípios, a Lei das Finanças locais, entre outros. De modo que não haveria melhor momento, melhor contexto temporal para a publicação da obra ‘Direito Municipal Cabo-verdiano’.

II. Um outro elemento que confere mais valor a uma obra jurídica concerne às qualidades de exaustividade e fundamentação. Obra exaustiva, com quase 400 páginas, que abarca os mais importantes tópicos actuais referentes ao Direito Municipal que são abordados com profundidade, com intensidade e com recurso ao direito comparado, às principais doutrinas, fontes legais, bibliografia variadas etc... Exaustiva mas fundamentada, pois, toda a construção teórica da obra decorre com fundamentação rigorosa, com emergência de doutrinas diversas, com debates, dialética e uma argumentação objectiva. Não há lugar para especulação e opiniões subjetivas.

Pela sua experiência, o autor poderia ser tentado a meter as suas subjetividades e considerações ideológicas. Pelo contrário, Mário Silva desenvolve com fundamentação várias posições da doutrina e apresenta sua posição, mas objectiva, rigorosa. Com sentido crítico e o devido distanciamento. Com autonomia, com reflexão, com honestidade intelectual.

2. Tópicos relevantes

I. Da obra emergem uma diversidade de tópicos e problemáticas como autonomia do direito municipal, governo local e não administração local, direito municipal comparado, evolução histórica do poder local, as competências dos órgãos municipais, etc... Não sendo possível, pelas limitações de espaço, apenas faremos ligeiras considerações.

Em primeiro lugar, a obra corresponde a uma grande contribuição para a autonomia do direito municipal na medida em que o autor Mário Silva, além de destacar essa autonomia no próprio título, apresenta a natureza do direito municipal com potencial para emergir como uma disciplina com uma certa autonomia, no quadro do direito administrativo. O corpus das matérias referentes ao direito municipal pode seguir o exemplo de várias disciplinas do direito que ganharam autonomia, em virtude da complexidade da realidade e necessidade de regulamentação jurídica.

II. Em segundo lugar, o autor sustenta que o poder local constitui um governo local (e não administração local) visando reforçar a afirmação da autonomia política do município. É que a expressão administração municipal remete apenas para uma dimensão administrativa. Na verdade, o município em Cabo Verde, além da dimensão da função secundária que é a função administrativa, possui uma função principal que é a dimensão política. De modo que o município é uma entidade político-administrativa dotada de competências políticas e administrativas para conceber e implementar medidas de políticas. Refira-se que no território municipal, a população – através dos seus órgãos eleitos, presidente, câmara municipal e assembleia municipal – auto organiza-se num governo local para exercer com autonomia política e jurídica os poderes e competências e prosseguir o interesse público local, no quadro da Constituição e demais leis e apenas sujeitos ao controlo da legalidade.

III.Cumpre-nos destacar como ponto forte da obra uma análise muito bem conseguida do direito municipal comparado, em que o autor apresenta e analisa as problemáticas mais relevantes do sistema municipal em França, Espanha e Itália, que possuem similitudes com o ordenamento de Portugal e de Cabo Verde. São países com a mesma matriz em matéria de direito administrativo resultante da revolução francesa.

Por exemplo, em França, o poder local organiza-se em regiões, departamentos e comunas (municípios). Nos 36.686 municípios existem dois órgãos: conseil municipal (assembleia municipal) enquanto órgão deliberativo e o maire (presidente da CM) que é o órgão executivo. Contrariamente ao sistema cabo-verdiano, é essa assembleia que elege o maire e os seus adjuntos. Apenas existe eleição universal para a assembleia municipal para um mandato de seis anos. É o próprio Maire (presidente da câmara) que preside a assembleia municipal, representa o município e ao mesmo tempo representa o Estado no território.

Em Espanha, o Estado, ao nível territorial, organiza-se em comunidades autónomas, províncias e municípios, designados ayntamientos. Existe num total 8.124 ayuntamientos. Como em Cabo Verde, o alcalde (presidente da Câmara) é eleito por sufrágio universal pelos eleitores do município para um mandato de 4 anos.

Em Itália, existem regiões, províncias, cidades metropolitanas e municípios. Os 7.914 municípios italianos, organizam-se em três órgãos: consiglio (assembleia municipal), câmara municipal (Giunta) e sindaco (presidente de câmara), o qual actualmente é eleito pela população, como acontece em Cabo Verde. Por outro lado, o sindaco também representa o município e o Estado.

OBS. O que é que o leitor pensa sobre a possibilidade do presidente de Câmara em Cabo Verde passar também a representar, formalmente, o Estado no território municipal.

IV. Após o quadro do direito comparativo Mário Silva problematiza uma resenha histórica e evolução do poder local até às soluções actuais. Mostrou que o poder local não é recente uma vez que Cabo Verde já teve experiência de poder local desde os primórdios do povoamento. Todavia, o marco mais relevante para a autonomia do governo local resultou da Constituição de 1992. Antes, o poder local fazia parte da administração indirecta do Estado, com as figuras de Delegado do Governo e Conselho Deliberativo. Veja-se que o Estatuto dos Municípios – enquanto diploma que regula a organização e o funcionamento do governo local, na linha dos princípios consagrados na chamada constituição municipal – foi aprovado em 1995, um ano antes das eleições municipais de 1996.

V. Quanto à matéria da organização do governo local, referente aos órgãos municipais, é mister afirmar que o Professor Mário Silva, na nossa modesta opinião, encerrou a questão sobre a figura do presidente da Câmara Municipal, que por sinal não consta do texto constitucional, (como, aliás, ocorre em Portugal) e que, por sinal, chegou a suscitar dúvidas em algumas mentes. Com fundamento, o autor, depois de um périplo por alguns autores e professores como Freitas do Amaral e pelas suas análises próprias, reafirmou a figura do presidente da Câmara como um órgão municipal com total legalidade e legitimidade.

VI. Por fim, em virtude da limitação do espaço que não nos permite aprofundar outras problemáticas, não se pode deixar de referir que o autor manifestou-se contra o conceito de tutela do Estado sobre os Municípios. Aliás, foi mais longe e propõe que se retire esse conceito do ordenamento municipal. O autor disserta sobre as relações entre o Estado e os Municípios defendendo o incremento de um ambiente de cooperação, articulação e colaboração visando a prossecução do interesse público. Em nossa opinião, e a experiência actual demonstra que, felizmente, esta relação entre os Municípios e o Estado é muito boa. Por outro lado, o autor acha por bem que também tem de haver controlo. Aliás, existem vários tipos de controlos como administrativo, político, jurisdicional bem como o controlo de legalidade por parte do Estado. Porém argumenta o autor que esse controlo de legalidade do Estado sobre os municípios seja normal e nunca tutela. Porquanto, o conceito de tutela, na linha do que se encontra preceituado no CC, traz conotações relativas à menoridade do município em relação ao Estado. Essa situação não pode existir entre as pessoas coletivas Estado e Municípios que se relacionam numa óptica de paridade, de autonomia e de outros princípios e valores consagrados constitucionalmente, no quadro dos seus fins e tarefas de servir a coletividade nacional e local.

Esta ligeira síntese apenas constitui um mero aperitivo para que o leitor possa mergulhar no prazer de ler e de degustar esta obra, por sinal muito bem escrita e organizada, com uma linguagem agradável dedicada a um dos temas mais actuais da atualidade política e jurídica. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1105 de 1 de Fevereiro de 2023.

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Autoria:Júlio Lopes dos Reis,6 fev 2023 8:20

Editado porAndre Amaral  em  6 fev 2023 8:20

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