I
In illo tempore, na minha cidade-natal, no domingo de Páscoa recebíamos em casa a visita do pároco da freguesia – anunciada por toques de sineta e uma revoada de meninos-acólitos – que nos abençoava e dava o crucifixo a beijar.
Seguia-se o ritual atarefado de abrir as pesadas abas da mesa, colocar a toalha de renda ainda impregnada de naftalina, tirar dos armários pratos, travessas e talheres, que só se usavam duas ou três vezes por ano; por fim, os copos de cristal e os pratinhos com uma infinidade de iguarias e doçuras. No almoço pascal servia-se o tradicional cabrito assado, o arroz de miúdos [bem entendido, de cabrito] regados com um vinho “velho” e laranjada para os miúdos [agora, nós], culminando o repasto com o arroz doce ladrilhado com canela, o folar com ovos cozidos, as amêndoas (havia-as de todas as cores e até com licor) e, para os adultos, cálices de vinho abafado.
No final, os miúdos – eu, minha irmã e meus primos – recebíamos a habitual e ansiada prenda: autorização e bilhetes para assistir no Parque-Cine a um filme, sempre de temática religiosa, inevitavelmente uma superprodução de Hollywood.
Vi e revi os filmes Quo Vadis (produção 1951), Ben-Hur (1960) e, mais tarde, o musical Jesus-Cristo Superstar (1973). Sempre me fascinou o clássico Quo Vadis?, bem como o romance original de Henryk Sienkiewicz (Nobel da Literatura em 1905). Curiosamente, não obstante a fascinação pelo par romântico na tela – Lígia (a cativa cristã) e Marco Vinício (o nobre romano) – e pela genialidade do ator Peter Ustinov na recriação do imperador Nero, que mandou incendiar Roma para compor um poema épico, retive na memória uma personagem secundária – Petrónio, cônsul, escritor e esteta que vivia na corte do Imperador, e a quem chamavam o “árbitro das elegâncias”.
II
Há dias, tive a sorte de encontrar e ler a obra mais conhecida de Petrónio, intitulada Satyricon, que reconstitui a vida na cidade imperial e o imaginário clássico, incluindo o pensamento educativo – paideia e humanitas – de há mais de 20 séculos.
Título: Satyricon Autor: Petrónio [Titus Petronius Niger, cônsul em 62] Texto latino fixado por Konrad Muller (Artemis Zurich, 1995). Edição: Livros Cotovia e Delfim F. Leão, 2005 |
Gostei do livro, sublinhei (a lápis) os trechos que me fascinaram pela beleza da narrativa e impressionante contemporaneidade dos factos contados e cenas vividas.
Sem querer maçar os leitores, caí na tentação de partilhar convosco fragmentos do episódio central: o Festim de Trimalquião, verdadeiro microcosmo da Roma Imperial no século I da era cristã. No enredo destaca-se a personagem Trimalquião, liberto enriquecido que gostava de ostentar o seu poder, e dois jovens scholastici – Encólpio e Gíton – que “não representavam propriamente os verdadeiros intelectuais, mas antes o diletantismo reinante, produto de uma educação desfasada do mundo, que dá azo apenas a uma existência vivida sempre nos limites instáveis do expediente”.
A cena de abertura do livro, passada numa Escola de Retórica onde Encólpio procura impressionar o mestre-escola com um discurso de denúncia dos males do sistema educativo, motivou-me para a leitura integral da obra, “um caso especial e único, quer pelo tema, quer pela estrutura narrativa, quer pelo estilo, afirmando-se como o proto-romance por excelência na tradição greco-romana”1.
Apresenta-se um fragmento:
“Eu penso que os jovens ao frequentarem a escola, se tornam parvos de todo, porque não discutem nem vêem nenhum dos problemas da realidade quotidiana. (…)
Os pais é que devem ser chamados à pedra, pois não querem que os filhos beneficiem de uma severa disciplina. Antes de mais quando, como fazem com tudo, sacrificam à ambição inclusive as próprias esperanças; depois, na pressa de satisfazerem os seus anseios, empurram para o foro os filhos, ainda verdes no estudo. E com a eloquência de que proclama a grandeza sem rival, querem vestir os miúdos logo à nascença. Mas se permitissem que o esforço de aprendizagem fosse gradual, de forma a impregnar os jovens estudantes de leituras sérias, a ajustar os seus espíritos aos preceitos da sabedoria, a burilar as suas palavras com um estilo ático, a escutar vezes sem conta os modelos que pretendem imitar, a explicar que não possui qualidade alguma o que agrada à miudagem – nesse caso a sublime arte da eloquência recuperaria a sua imponente gravidade. Agora, porém, os miúdos passam o tempo a brincar na escola, os jovens são alvo de caçoada no foro e - facto ainda mais escandaloso – ninguém, na velhice, quer admitir que fez um mau aprendizado”.2
Nas notas de leitura deste extraordinário livro, registei episódios e reflexões sobre o sistema educativo na Antiguidade Clássica que mantêm uma impressionante contemporaneidade. Julgo ser dispensável um remate moralizante. Que cada leitor tire as suas conclusões.3
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1 Idem, contracapa.
2 Idem, pp. 30-31.
3 O leitor interessado pode consultar na internet: Satyricon de Petrónio (2020). Lebooks Editora. Disponível em https://www.kobo.com/pt/pt/ebook/satyricon-classi...
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1105 de 1 de Fevereiro de 2023.