O livro que li, de início cautelosamente dada a natureza especializada dos temas e, depois, de forma cada vez mais solta e livre pelo prazer intelectual que me ia suscitando, reflete bem o prestígio do seu autor. Sem se ter acomodado ao conforto dos cargos de liderança, no país e em organizações internacionais, em contracorrente com o habitual sentimento de dever-cumprido numa carreira profissional de sucesso, António Pedro Delgado foi transformando o saber acumulado localidade-a-localidade, ilha-a-ilha, instituição-a-instituição, país-a-país, em inquietações e desafios plasmados em artigos, conferências e livros especializados.
Além de agradável, é de fácil leitura. O título – curto, mas denso – orienta-nos para o conteúdo: a valorização da aprendizagem, do estudo e da investigação (ao longo do curso e ao longo da vida) em Educação Médica, “em contextos em evolução que irão alterar as formas de prestação dos cuidados de saúde no futuro”2. O livro está estruturado em três partes. A primeira incide na problemática, no enquadramento teórico e no contexto nacional; a segunda regista os resultados parcelares da investigação-ação em artigos validadas pela comunidade científica internacional; a terceira enuncia os desafios orientados para a construção de uma política sustentável de educação médica. Termina com o posfácio “Subsídios para a criação da Escola de Ciências da Saúde em Cabo Verde”.
A leitura compreensiva do livro-tese remete-nos para um debate necessário: Podemos ainda aprender com o passado? É possível “glocalizar”3, cruzar o saber local com o desenvolvimento científico gerado em outras dimensões geopolíticas? Será utopia pensar – agora – o futuro da educação médica em Cabo Verde?
No enquadramento do livro, o autor situa-se “nos desenvolvimentos que vêm surgindo na Educação Médica mundial no século XXI”, com especial incidência nos “Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento” que ultrapassaram a dependência crónica da ajuda externa, conseguiram um desenvolvimento durável e edificaram uma educação médica com assinalável sucesso.
Um dos aspetos inovadores da obra é a aplicação da Nissologia – campo de estudos específicos para os microestados insulares – nos pressupostos metodológicos e nas propostas “orientadas para um conceito de educação médica que possa modular, política e tecnicamente, as instituições de formação vocacionadas para um ensino de qualidade, mas incorporando as condições concretas do país”4.
A questão de fundo que se coloca na construção da Educação Médica é a gestão das dependências e interdependências que ainda persistem em Cabo Verde, um Pequeno Estado Insular. Nessa linha de raciocínio, António Pedro Delgado expressa inquietações e formula perguntas, algumas sem respostas assertivas. Um exemplo: “Quais são as condições processuais e institucionais mínimas e decisivas, ditadas pela necessidade, prioridade e viabilidade da implantação da Educação Médica que a tornam exequível e durável?”5
O autor da tese Educação Médica em Cabo Verde conhece bem a história da Medicina em Cabo Verde após a independência, que protagonizou.
“É histórico que, em 05 de julho de 1975 estavam presentes apenas 13 médicos que ficaram dos que tinham sido recrutados ou arregimentados como médicos militares e colocados em Cabo Verde ainda no período colonial. Esse número evoluiu para 401 arrolados no final do período em estudo, a 31 de dezembro de 2014. (…)
No cômputo geral, os 401 médicos foram graduados, surpreendentemente em 99 instituições de ensino superior em vários cantos do mundo, mas nenhum em Cabo Verde.”6
António Pedro Delgado conhece bem a história recente da criação do Mestrado Integrado em Medicina (2015), na Universidade de Cabo Verde em parceria com a Universidade de Coimbra. Conhece bem o modelo adotado e a estrutura curricular: os três primeiros anos na Uni-CV, eminentemente teórico-conceptuais; o 4.º e 5.º anos na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, de índole clínica e o 6.º ano, estágio e tese em Cabo Verde.
Com a autoridade conferida pelo seu curriculum vitae e pela docência no Curso de Medicina, considera que “o ensino médico que agora teve início, tem sido mais incremental do que racional” e que dessa experiência ressaltam cautelas associadas com o baixo nível de qualificação pedagógica dos docentes, o fraco nível do elevado número de candidatos aos estudos superiores.7
A sustentabilidade é a palavra-chave, quer a epistemológica, quer a financeira. A tese original alarga-se, os estudos adensaram os desafios da educação médica no futuro, em sintonia com a transição demográfica, ambiental, epidemiológica e suas implicações na saúde e bem-estar da população.
Em posfácio, o autor acrescenta “uma reflexão e ação, no sentido da evolução do curso de medicina iniciado para uma Escola que perenize esse processo educativo e contribua para a mudança de paradigma nas respostas integradas às lacunas do sistema de saúde”. Nesse sentido, recomenda a criação na universidade de uma unidade orgânica “interprofissional e transdisciplinar”, a Escola das Ciências da Saúde em Cabo Verde, em alternativa à Escola de Ciências Médicas e da Saúde prevista nos estatutos, ainda não instalada e sem edifício identificado no Campus Universitário.
“É nossa convicção que criar e fazer afirmar uma Escola das Ciências da Saúde em Cabo Verde, no contexto de pequeno país insular e geo-demográfico particular é um caminho para consolidar o processo de educação nas ciências da saúde (Enfermagem, Medicina, Farmácia, Odontologia, Biologia, Ciências Biomédicas e Saúde Publica) e a formação de outros profissionais de saúde e de áreas afins ligadas aos seus determinantes sociais.”8 .
O livro Educação Médica em Cabo Verde, quer pelo substrato teórico, quer pelas propostas fundamentadas que apresenta, é uma referência no sistema educativo nacional, em particular, para a Educação em Saúde.
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1 Fui um dos apresentadores do livro na Biblioteca Nacional da Praia, no dia 2 de dezembro de 2022.
2 Educação Médica…, p. 57.
3 Termo utilizado por Corsino Tolentino, Universidade e Transformação Social nos Pequenos Estados em Desenvolvimento: o caso de Cabo Verde (2007), p. 145.
4 Educação Médica…, p. 25
5 Ibidem, op. 28, 29.
6 Ib., pp. 137, 144.
7 Ib., pp. 299/300.
8 Ib., p. 319.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1109 de 1 de Março de 2023.