Incerto Amor1

PorAdilson F. Carvalho Semedo,6 mar 2023 8:21

Professor Auxiliar da FCSHA – Uni-CV – Cientista Social/Sociólogo
Professor Auxiliar da FCSHA – Uni-CV – Cientista Social/Sociólogo

O inquérito Demográfico e de Saúde Reprodutiva (IDSR-III – 2018) evidenciou que a idade mediana na primeira união para as mulheres de 30-49 anos estima-se a 25,5 anos, contra 29,1 anos para os homens de 30-59 anos. No geral, não se verificou variações importantes entre 2005 e 2018.

De realçar que a situação do celibato se acentuou em 2018 em quase todos os grupos etários, particularmente nas mulheres, e que o celibato definitivo se intensificou, especialmente nos homens. Por sua vez, a idade mediana nas primeiras relações sexuais pouco varia entre as mulheres e os homens de 25-49 anos (17,4 anos para as mulheres e 16,4 anos para os homens).

Nos caminhos que ligam as primeiras relações sexuais à primeira união conjugal, todos vivem, pensam viver, ou sonham viver o amor de alguma forma. Porém, a familiaridade com o amor criou uma aura de subjetivação que constitui um obstáculo à sua objetivação. Por isso, no pensamento social cabo-verdiano, ainda só a literatura faculta elementos para a abstração do amor.

Por exemplo, as obras literárias “O Escravo” de Evaristo d’Almeida (1856), “Contra Mar e Vento” de Teixeira de Sousa (1972), e “Eva” de Germano Almeida (2006), conferem visibilidade às condições em que os sentimentos amorosos se efetivaram com interpenetrações subjetivas, matizadas pelos propósitos de classe, de raça e de individualidade, mas também às condições em que foram deslocados além da linha de limite da sua possibilidade, como sacrilégio no contexto escravocrata, como insolência no contexto tardo-colonial, e como incerteza na nossa democrática contemporaneidade.

O Escravo” de Evaristo de Almeida mostra o amor em ambos os lados da linha limite de concretização determinada pela sociedade escravocrata. Ganha plausibilidade quando se dá entre indivíduos da mesma condição social. Como exemplos temos a afeição de Luiza pelo João (ambos escravos, ela confidente dele e testemunha de toda a trama), que, embora plausível, não se concretizou dado que os sentimentos de João não eram recíprocos, e a afeição de Júlia e Luís, ambos escravos, vivenciada como relação concretizada, até se tornar conhecida pelo dono deles, e necessitar da aprovação deste.

Entretanto, quando é o caso da afeição de João, o escravo, pela filha do seu dono, Maria, o amor perde plausibilidade e legitimidade. Torna-se um sacrilégio, ferindo profundamente a estrutura da ordem social escravocrata. Isso também se anuncia na relação entre o patriarca Pimentel e a sua escrava Júlia. Este, nutrido pelo sentimento de posse legítima, por direito, não admitiu nem considerou reconhecer a individualidade e a sua condição de pessoa dela. É emblemática a passagem em que Pimentel acusa a escrava de traição e esta responde: “Como, se nunca vos amei?”.

Por sua vez, no conto «O Encontro» do livro “Contra Mar e Vento” de Teixeira de Sousa, temos o retrato literário de uma relação amorosa inserida num contexto social pós-escravocrata na qual se reclama, de forma agonizante, mas firme, o amor como um atributo de iguais. Num contexto social em transformação, os capitais sociais, como a ascendência racial e classista, assistem a ascensão social do capital cultural, acentuado na formação académica, situação que potencia novas práticas sociais.

Se aqui a questão da raça não ganha visibilidade explícita, ela subjaz sob os marcadores que na tradição foguense asseguraram o lugar diferenciado a cada estrato social e certificam as distâncias sociais: o sobrado e a festa. Por isso, Miguel, o amante apaixonado, simboliza a vanguarda de uma ordem social que se insinua à medida que assiste ao definhamento precedente. Ele e Ilda, a amada, desafiam profundamente uma ordem social sustentada nas raízes socioeconómicas que evocam uma génese racialmente diferenciada.

O seu idílio representa a mitigação das distâncias culturais, traduzido, por exemplo, no gosto comum por Chopin, nos diálogos sobre Eça de Queiroz, sem exigir nivelamento socioeconómico. Roberto, primo da Ilda, com a sua emblemática afirmação «fora a lei de feijão-mistura!» figura a desesperada reação social. As pretensões amorosas de Miguel, um aspirante da alfândega, com uma legítima descendente das gentes do sobrado era uma insolência afrontosa à qual os guardiões da honra da classe foram chamados a responder. “O Encontro” demostrou que essa relação amorosa era possível, mas fora da ilha do Fogo.

Se Evaristo de Almeida e Teixeira de Sousa enunciam o amor como um atributo social somente possível entre indivíduos de igual condição social, Germano Almeida, em “Eva”, enuncia o amor como atributo social em que as diferenças sociais funcionam como estímulos. São diversos os seus romances que tomam como fundo o processo de modernização política do arquipélago, sem descurar os processos de subjetivaçãoinerentes. “Eva” é a objetivação literária do amor focado nas particularidades individualizantes e já estruturada pela biopolítica priorizada com a independência nacional.

Germano Almeida mostra-nos que o amor liberto do casamento e das amarras do dispositivo de aliança dá centralidade às necessidades subjetivas do sujeito amoroso, permitindo-o buscar satisfação da carência amorosa sempre se apresente, mas também fica evidente que esta modelação social das relações amorosas obriga-o a viver num circuito de sucessivos recomeços, uma vez que o desgaste amoroso, produto da própria relação, gera oportunidades de enredamento por outras possibilidades de relações amorosas.

“Eva” é um exemplo da afirmação do amor como meio de comunicação simbolicamente generalizado que permite centralizar, nas comunicações, tudo a respeito da individualidade. Porém, se a operacionalidade do código amor exige que tanto o amante como o amado têm de dispor comunicativamente da individualidade de cada um, tematizando tudo o que diz respeito a isso, acentua-se a improbabilidade disso ocorrer. Por um lado, à medida que o encontro, a descoberta, e o cuidado de si trazem a cada indivíduo facetas suas que não consegue tematizar, torna-se improvável e incerto que o amado se possa dar a conhecer ao amante de forma absoluta dado que, no mínimo, somos seres que nunca se revelam absolutamente. Logo, perante o imperativo de se conhecer o amado, como condição fundamental para se poder amá-lo, a incerteza surge como a linha limite de possibilidade de concretização do amor.

Em suma, partindo da literatura aprendemos que o amor, mais de que sentimento individual, é um código social que potencializa a comunicação da individualidade, segundo a estrutura e os interesses de cada período histórico e está atrelada a evolução das relações familiares e de género. Compreender a sua variabilidade, nestes nossos dias marcados pelos antagonismos de género, pode salvar vidas!

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1 Artigo síntese do artigo «A Enunciação Literária das Condições Sociais de Possibilidade do Amor nas Obras O Escravo, Contra Mar e Vento, e Eva, publicado na obra coletiva “EM PORTUGUES Falar, Viver, Pensar o Século XXI” pela Universidade Católica Editora, em dezembro de 2022.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1109 de 1 de Março de 2023.

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Autoria:Adilson F. Carvalho Semedo,6 mar 2023 8:21

Editado porClaudia Sofia Mota  em  9 mar 2023 18:52

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