Línguas próprias de Cabo Verde

PorDulce Lush,13 abr 2023 9:18

​Em boa hora, foi agendado um debate parlamentar sobre os bens linguísticos de Cabo Verde.

Com efeito, por iniciativa da deputada Mircéa Delgado, vai ser discutido, em sessão plenária do Parlamento cabo-verdiano, se se deve ou não atribuir à língua portuguesa o estatuto de património imaterial nacional, com vista à sua preservação, valorização e fruição social.

Creio tratar-se de uma ilustre oportunidade para se retomar alguns tópicos de uma problemática que, afinal, não esta completamente definida.

Refiro-me, concretamente, à tensão a que o sistema linguístico cabo-verdiano tem sido submetido, por leis e decisões recentes. Convergem, nestas, vários sinais de uma ofensiva para a divisão desse sistema e consequente desconsideração do português como língua nacional de Cabo Verde.

Assim, a lei da Assembleia Nacional 85/IX/2020 que aprova o "Regime Jurídico de Proteção e Valores do Património Cultural", no capítulo I, artigo 2°, alínea 4., define, de forma exclusiva:

A língua materna cabo-verdiana, enquanto fundamento da soberania nacional, é um bem essencial do património cultural de Cabo Verde.

Antes, em julho de 2019, o Conselho de Ministros decidira pela elevação da língua cabo-verdiana a património imaterial nacional, por proposta do IPC - Instituto do Património Cultural.

De notar, neste domínio, a divergência de critérios entre o IPC e a "Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, adotada pela UNESCO em 2003 e de que Cabo Verde é signatário.

Esta estabelece que as línguas, mesmo as que se encontrem em risco, não são elegíveis à inscrição na lista do Património Cultural Imaterial. Ou seja, uma língua, enquanto tal, não é considerada como parte do património cultural imaterial pois, nos termos da Convenção, só merece esse estatuto o "meio de expressão linguístico" de um bem cultural, o qual possa estar em risco. Por exemplo, uma tradição ou prática cultural que necessite utilizar uma determinada língua e que esteja em risco, poderá ser inscrita. A salvaguarda dessa tradição implicará, então, que se salvaguarde, igualmente, a língua que a veicula.

Já o IPC considera a língua cabo-verdiana como um bem cultural imaterial de Cabo Verde, por ser esta um "símbolo nacional" e "um marco identitário do cabo-verdiano". Como indicado no sítio internet oficial do Instituto, este realizou o trabalho técnico de "inventário e classificação da língua cabo-verdiana como património cultural imaterial nacional".

Temos, pois, que, no domínio da língua, o Governo, através do MCIC-IPC, defende a classificação do cabo-verdiano, na sua qualidade de "elemento de comunicação e de transmissão de valores culturais"; pela sua "capacidade para estabelecimento do diálogo intercultural", e, ainda, porque tal estatuto "dar-lhe-á o prestígio e a dignidade condizentes com as funções que desempenha nas várias esferas da sociedade e além-fronteira".

Mas, nesse caso, e sendo essa a opção, teria que se proceder à classificação de todo o conjunto linguístico de Cabo Verde e, não, à de uma língua única, desgarrada do sistema dual de que é parte integrante, como se fez.

De facto, a mensagem, tão redutora como militante, traduz-se, nesse mesmo texto, através de uma referência mais explícita à língua portuguesa, à qual é atribuído um outro tipo de qualificativo:

(...) a língua do colonizador, no nosso caso a portuguesa, manteve-se como única língua oficial alvo de política linguística de ensino (...)

Ora, esse tratamento dado ao património linguístico cabo-verdiano introduz, no fundo, uma distorção na cabo-verdianidade, ao excluir a língua portuguesa do património nacional. Mas, também, contraria a Constituição, cujo artigo 9° prevê um regime inclusivo das duas línguas.

É por todas estas razões e, ainda, porque está em causa a ideia que a Nação tem de si própria, o iminente debate parlamentar não podia ser mais propício.

Para que o património que a História, a linguística e a vontade soberana dos cabo-verdianos juntaram não venha a ser dissipado, pode-se e deve-se esperar muito desse momento parlamentar e dos nossos representantes.

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Autoria:Dulce Lush,13 abr 2023 9:18

Editado porAndre Amaral  em  13 abr 2023 9:18

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