Com efeito, por iniciativa da deputada Mircéa Delgado, vai ser discutido, em sessão plenária do Parlamento cabo-verdiano, se se deve ou não atribuir à língua portuguesa o estatuto de património imaterial nacional, com vista à sua preservação, valorização e fruição social.
Creio tratar-se de uma ilustre oportunidade para se retomar alguns tópicos de uma problemática que, afinal, não esta completamente definida.
Refiro-me, concretamente, à tensão a que o sistema linguístico cabo-verdiano tem sido submetido, por leis e decisões recentes. Convergem, nestas, vários sinais de uma ofensiva para a divisão desse sistema e consequente desconsideração do português como língua nacional de Cabo Verde.
Assim, a lei da Assembleia Nacional 85/IX/2020 que aprova o "Regime Jurídico de Proteção e Valores do Património Cultural", no capítulo I, artigo 2°, alínea 4., define, de forma exclusiva:
A língua materna cabo-verdiana, enquanto fundamento da soberania nacional, é um bem essencial do património cultural de Cabo Verde.
Antes, em julho de 2019, o Conselho de Ministros decidira pela elevação da língua cabo-verdiana a património imaterial nacional, por proposta do IPC - Instituto do Património Cultural.
De notar, neste domínio, a divergência de critérios entre o IPC e a "Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, adotada pela UNESCO em 2003 e de que Cabo Verde é signatário.
Esta estabelece que as línguas, mesmo as que se encontrem em risco, não são elegíveis à inscrição na lista do Património Cultural Imaterial. Ou seja, uma língua, enquanto tal, não é considerada como parte do património cultural imaterial pois, nos termos da Convenção, só merece esse estatuto o "meio de expressão linguístico" de um bem cultural, o qual possa estar em risco. Por exemplo, uma tradição ou prática cultural que necessite utilizar uma determinada língua e que esteja em risco, poderá ser inscrita. A salvaguarda dessa tradição implicará, então, que se salvaguarde, igualmente, a língua que a veicula.
Já o IPC considera a língua cabo-verdiana como um bem cultural imaterial de Cabo Verde, por ser esta um "símbolo nacional" e "um marco identitário do cabo-verdiano". Como indicado no sítio internet oficial do Instituto, este realizou o trabalho técnico de "inventário e classificação da língua cabo-verdiana como património cultural imaterial nacional".
Temos, pois, que, no domínio da língua, o Governo, através do MCIC-IPC, defende a classificação do cabo-verdiano, na sua qualidade de "elemento de comunicação e de transmissão de valores culturais"; pela sua "capacidade para estabelecimento do diálogo intercultural", e, ainda, porque tal estatuto "dar-lhe-á o prestígio e a dignidade condizentes com as funções que desempenha nas várias esferas da sociedade e além-fronteira".
Mas, nesse caso, e sendo essa a opção, teria que se proceder à classificação de todo o conjunto linguístico de Cabo Verde e, não, à de uma língua única, desgarrada do sistema dual de que é parte integrante, como se fez.
De facto, a mensagem, tão redutora como militante, traduz-se, nesse mesmo texto, através de uma referência mais explícita à língua portuguesa, à qual é atribuído um outro tipo de qualificativo:
(...) a língua do colonizador, no nosso caso a portuguesa, manteve-se como única língua oficial alvo de política linguística de ensino (...)
Ora, esse tratamento dado ao património linguístico cabo-verdiano introduz, no fundo, uma distorção na cabo-verdianidade, ao excluir a língua portuguesa do património nacional. Mas, também, contraria a Constituição, cujo artigo 9° prevê um regime inclusivo das duas línguas.
É por todas estas razões e, ainda, porque está em causa a ideia que a Nação tem de si própria, o iminente debate parlamentar não podia ser mais propício.
Para que o património que a História, a linguística e a vontade soberana dos cabo-verdianos juntaram não venha a ser dissipado, pode-se e deve-se esperar muito desse momento parlamentar e dos nossos representantes.