Não nos podemos dar ao luxo de continuar a lançar pedras vazias de funcionalidade, conteúdo e sentido estético quando temos em mãos patrimónios tão valiosos à nossa disposição.
Quando me refiro à falta de visão faço-o porque, com pouco investimento e muita vontade, poder-se-ia transformar aquele património numa residência artística, por exemplo, para acolher artistas cabo-verdianos e estrangeiros. Imaginem compor uma sinfonia, escrever um livro, editar um filme, criar uma identidade visual, preparar uma exposição ou uma peça de teatro naquele espaço - na ausência de ruídos, distrações quotidianas e sob a brisa fresca e o aconchego dos eucaliptos e pinheiros de Monte Velha, localizada na região norte daquela ilha… Já imaginaram?
É importante que tenhamos a capacidade de olhar para estas ilhas, e tudo oque elas contêm, com nobreza e elevação de espírito. Não podemos continuar a permitir que pequenos interesses, falta de visão e algum complexo continuem a atrasar este país - pequeno em território, mas de enorme potencial. Não nos podemos dar ao luxo de ser míopes numa terra onde as cabras têm sido os nossos mestres. É tempo de afinar os sentidos e as estratégias de atuação. Esquivar-se dos caminhos fáceis!
Àqueles que chegaram primeiro, em condições pouco favoráveis e muitas vezes adversas, devemos a ousadia e a visão de que o ensino seria um veículo para a criação de melhores condições de vida, seja no contexto pessoal, familiar ou coletivo. Assim se justifica o considerável número de pessoas com formação superior. A nossa geração tem por isso, ou deveria ter, uma responsabilidade acrescida, de outra forma estaremos a hipotecar todo o trabalho e esforço das gerações anteriores.
Não se pode usar os espaços de decisão e poder como escudo para pequenos interesses, sejam pessoais, económicos ou políticos. A condição de ilhéu não deveria, de modo algum, toldar-nos a visão e os sonhos – é urgente convocar a grandeza atlântica para projetar estas ilhas.
Aproveito este argumento para refletir criticamente sobre alguns conceitos que têm sido usados nos discursos públicos. Noções como turismo cultural, indústrias culturais ou criativas, para citar alguns, têm sido usados, a meu ver, de forma ligeira e, muitas vezes, sem uma ação consequente. O setor das artes e da cultura pode representar um verdadeiro pilar de desenvolvimento para Cabo Verde. Reconheço o seu potencial, contudo as políticas públicas, tanto a nível nacional como autárquico, devem ser mais estruturantes, de outro modo travam esse desenvolvimento e o seu real contributo para o país. A estratégia para o setor cultural e artístico não se pode limitar aos festivais e outras celebrações sazonais, frágeis na sua conceção e realização. A materialização deste tipo de trabalho requer uma melhor estruturação e não se coaduna com flutuações e mudanças cíclicas de curto prazo.
Analisemos o seguinte:
1. Turismo cultural. Este tipo de turismo baseia-se em experiências autênticas, proporcionadas pela história, as tradições, a cultura e a arte. As comunidades têm uma história a ser contada, no entanto é preciso saber como contá-la. O setor artístico e cultural pode oferecer experiências únicas, que não podem ser encontradas noutros sítios. Existem, em Cabo Verde, gabinetes e observatórios dedicados ao estudo e análise deste setor e o seu impacto social, cultural e económico?
A possível proliferação de projetos museológicos e outros equipamentos culturais não resolvem o problema de base. As infraestruturas quando não acompanhadas de um projeto que lhes atribui corpo e sentido, não passam de paredes ocas destinadas à degradação. É preciso que haja uma classe de artistas, criativos e técnicos especializados nas diferentes frentes para poder desenvolver um trabalho consequente, profissional e com alto padrão de qualidade. Como é que iremos ultrapassar este enorme desafio se não estamos a apostar na formação de competências nesse sector?
2. Indústrias culturais ou criativas. Não estou certo de que estes conceitos tenham sido objeto de reflexão no meio académico e político em Cabo Verde. Tratam-se de temáticas nem sempre consensuais e, por isso, sensíveis. É importante estudar e conhecer as diferentes nuances para se poder orientar políticas baseadas no seu potencial - combinando criação, produção e comercialização. De que forma estamos a potenciar os bens de natureza intangível e cultural? Será que estamos em condições de falar de indústria? Se não, quais as estratégias de médio e longo prazo para que essa visão se materialize? O mercado de turismo cultural poderá oferecer algumas alternativas, mas seria sempre necessária uma estratégia articulada e continuada entre o setor das artes e da cultura e o setor do turismo. Não obstante, tratar-se de decisões políticas, naturalmente, este é um trabalho que teria de ser conduzido por técnicos especializados nessas matérias, através de estruturas autónomas.
O discurso sobre a cultura, o turismo ou o desenvolvimento das regiões ou comunidades tem, forçosamente, de ser acompanhado de um pensamento e questionamentos suficientemente maturados, seguidos de ações consequentes. Quando me deparo com um património com aquele potencial, como é o caso da antiga Residência da Presidência da República, na ilha do Fogo, automaticamente possibilidades e questões começam a surgir. Em primeiro lugar e, por ter um olhar particularmente treinado no setor das artes e da cultura, a ideia que me vem à mente é a descrição que abre este artigo. No entanto, as possibilidades são múltiplas – aquele espaço poderia, também, ser transformado num projeto de turismo doméstico e internacional de grande valor acrescentado para aquela região. Não teria forçosamente de ser um projeto público, talvez um privado estaria em melhores condições para investir e refletir sobre os reais potenciais daquele equipamento. Desde que se atendesse e respeitasse os princípios de proteção, preservação e valorização do património histórico e cultural.
Estes sectores estão diretamente relacionados e podem traduzir-se, de facto, num motor de desenvolvimento sustentável, para a economia nacional e contribuir para sustentar as comunidades locais. O caso da ilha de Lanzarote, nas Canárias, é um exemplo paradigmático de como a história, as tradições, a cultura e a arte podem transformar um território num destino de turismo cultural de referência, que atende aos pressupostos de sustentabilidade ecológica, económica e social.
O exemplo da referida Residência, além de requerer urgente ação de restauro e preservação - ainda que não seja somente para evitar a sua degradação – serve, também, como arquétipo para analisarmos e refletirmos sobre vários outros aspetos relativos ao genuíno potencial destas ilhas. Não podemos, de todo, dar-nos ao luxo de ser míopes num país em que somos obrigados a reinventar-se todos os dias para não padecermos. De tanto bailar na desgraça, somos descendentes de mulheres e homens cuja existência legou-nos pegada de sangue e suor. Hoje a dança é outra, ou ao menos, é nosso dever trabalhar para que assim seja!
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1122 de 31 de Maio de 2023.