Os Ensaios Literários de Milan Kundera: uma Filosofia da Literatura?

PorCarlos Bellino Sacadura,24 jul 2023 8:01

​1. Uma História Pessoal da Literatura Na sequência do falecimento de Milan Kundera, assiste-se a uma justa homenagem ao autor referenciando a sua obra literária, sobretudo os romances e até a sua adaptação cinematográfica, como aconteceu com A Insustentável Leveza do Ser, mencionando-se igualmente o olhar atento que lançou sobre o tempo que atravessou e lhe marcou a história pessoal, literária e política.

No entanto, ficou geralmente na sombra outro aspecto da sua produção intelectual, que me parece não menos relevante no legado cultural que deixa e se inscreve tanto plano da teoria e história da literatura, como nas suas perspectivas futuras. Paralelamente, há uma reflexão sobre o que significa ser escritor, incidindo mais no processo criativo do que nas técnicas de escrita.

Referimo-nos aos ensaios literários do autor, herdeiro da tradição ensaística de Montaigne – uma forma de escrita tanto literária como reflexiva, inacabada e sem pretensões sistemáticas, tal como acontece com a própria vida no seu fluxo, devir ou transformação não programada, espaço de emergência do inesperado assinalando a constante surpresa do mundo. Ao invés de se esconder sob uma pretensa objectividade impessoal ou conceptual, o autor apresenta uma voz personalizadaque nos interpela a partir da sua visão e nos convida a ter a nossa própria. A viajem pela História da Literatura efectuada nestes textos difere, contudo, da estritamente académica. Não é nesta perspectiva que ele se situa, mas na de um autor que escreve sobre autores. Os seus ensaios literários distinguem-se das obras de índole científica produzidas no âmbito académico por estudiosos da matéria, visando aplicar modelos interpretativos validados pelo consenso da comunidade científica da área de estudos literários (avaliação por pares), ou seja, pelos colegas categorizados e reconhecidos no âmbito da investigação literária, sobretudo a universitária. A sua abordagem é pessoal, e não consensual.

Não se trata da procura de originalidade resultante de um auto-convencimento orgulhoso do que distingue o seu trabalho, mas do espaço a partir do qual se produz o trabalho sobre a história literária e alguns dos seus principais expoentes: de um lado, temos os investigadores académicos e os modelos consensualizados que validam cientificamente as suas produções, e do outro encontram-se os que, como no caso de Milan Kundera e Italo Calvino, por exemplo, partem da sua experiência e reflexão como escritores para interpretar a história literária, numa perspectiva personalizada, afrontando modelos estabelecidos nos meios académicos ou críticos dominantes, para assumir a sua própria voz.

2. Uma Filosofia da Literatura

A leitura de uma História da Literatura recomenda-se para quem procura ter uma visão informada e rigorosa sobre os autores e teorias literárias, mas a de Kundera distingue-se por ser assumidamente uma História Pessoal da Literatura, como afirma em A Cortina – Ensaio em sete partes (Porto, Edições ASA, 2005, p. 59), recomendando-se antes para quem procura, mais do que informação, a singularidade de uma reflexão como leitor e autor. Neste artigo, vou centrar-me na questão da elaboração, nos Ensaios Literários de Milan Kundera, do que pode considerar-se como uma Filosofia das Literatura, um modo de pensar o mundo, a história, a sociedade, a cultura e a educação através da dimensão literária.

Esta proposta pareceria à partida inviável, dados os mundos diversos em que se movem a filosofia e a literatura: a primeira identifica-se como um modo de pensar o mundo, e a segunda como um modo de imaginá-lo ou ficcioná-lo. A forma de expressão também distingue a filosofia, que recorre à argumentação, e a literatura, que se desenvolve narrativamente (os ensaios de Kundera incidem mais na problemática do romance)ou poeticamente. Isso também as coloca em campos opostos, porque pensar significa argumentar, e narrar significa contar histórias ou ficcionar.

Em A Cortina (São Paulo, Companhia das Letras, 2006), Milan Kundera caracteriza a filosofia como um elemento da literatura e esta última como uma forma de pensamento (Kundera, 2005, pp. 62-65).Mas as dimensões filosófica e reflexiva não constituem algo como um empréstimo à dimensão literária, proveniente de uma cultura exterior a esta. Não se trata de uma imposição da filosofia e do pensamento a orientar a partir de fora a literatura, nem muito menos a condicioná-la de algum modo. A filosofia e a reflexão atravessam interiormente o espaço literário, não invadem, mas animam por dentro a literatura – em particular o romance.

3. Uma formação literária e filosófica: pensar o mundo no seu conjunto

Depois do conceito clássico de educação com génese na cultura literária e filosófica do mundo antigo, denominado como Paideia, o conceito moderno veio reconfigurá-lo como Bildung, que significa formação ou aprendizagem, não apenas na acepção escolar ou académica destes termos, mas na de uma formação integral do ser humano na sua pluridimensionalidade – ética, estética, cultural, social ou espiritual. Foi na literatura que melhor se ilustrou e experienciou esta ideia, através do chamado Bildungsroman – Romance de formação ou aprendizagem, iniciado pelo Whilhelm Meister de Goethe, e retomado em obras como o Chiquinho, do escritor cabo-verdiano Baltazar Lopes.

Em Kundera, este processo formativo ou Bildung efectua-se através da leitura, o seu mundo é sobretudo o da tradição literária e do seu presente, enquadrando os autores numa certa estética do romance. Podemos aceitar a sua lista de preferências literárias sem que esta limite as nossas próprias escolhas, ou seja, a selecção dos livros das nossas vidas, como propõem Mendo Henriques e Nazaré Barros (Os Livros das nossas Vidas, Lisboa: Editora Objectiva, 2016).

Em A Arte do Romance (São Paulo, Companhia das Letras, 2009), Kundera considera que a filosofia e a literatura pensam e interrogam o mundo, a vida e o seu sentido, levadas por uma paixão de conhecer que, contudo, se exprime e desenvolve diversamente em cada uma delas. A filosofia, pela voz de Husserl e Heidegger, reconhece na modernidade uma perda de sentido que o último designa como um esquecimento do Ser, devido à redução unilateral do mundo à sua dimensão técnica, quantitativa e matemática, com a emergência da ciência moderna, propondo uma redescoberta da existência, do vivido ou mundo da vida (Lebenswelt).

A literatura pretende iluminar os múltiplos aspectos deste mundo da vida devolvendo ao ser humano a sua dimensão narrativa e imaginativa, substituída no mundo moderno pela exclusividade da dimensão racional. Aprofunda e traz à luz outros aspectos da existência: Cervantes pergunta-se o que é a aventura; com Samuel Richardson começa a desvendar-se a vida secreta dos sentimentos; com Balzac descobre-se o enraizamento do ser humano na História; com Flaubert, explora-se o cotidiano e, com Marcel Proust, o tempo; (…). (Kundera, 2009, pp. 12-13)

Em contraste com as certezas induzidas pelo conhecimento científico ou filosófico que, à maneira cartesiana, passam pela dúvida para alcançar a certeza, a sabedoria do romance é uma sabedoria da incerteza (Kundera, 2009, p. 15)a que mais se adequa ao nosso tempo, pleno de riscos e de imprevisibilidade. Em A Cortina Rasgada (São Paulo, Companhia das Letras, 2006), Kundera refere-se a Fielding, escritor e teórico da literatura, para se demarcar de qualquer tentativa de “funcionalização” ou “burocratização” da literatura, risco em que pode incorrer a pesquisa académica e o ensino quando tentados a ditar normas e avaliar a literatura (estamos a focar a problemática do romance, e não a literatura em geral) com conceitos dogmáticos: o romance apresenta uma liberdade que ninguém pode limitar e cuja evolução será uma perpétua surpresa (Kundera, 2006).

A filosofia e o romance constituem formas de saber – a primeira, conceptual, e a segunda, narrativa – unidas na pretensão de abordar o mundo no seu conjunto, em contraste com as disciplinas ou ciências especializadas. Poderiam ser fulcrais para obviar à actual fragmentação do conhecimento, numa formação para a complexidade como a preconizada por Edgar Morin. Contudo, ficam acantonadas em cursos ou áreas especializadas, a abranger apenas os estudantes que os frequentam. Repensar as suas potencialidades em currículos que visassem uma formação integral ou sistémica poderia ser um projecto estimulante no sentido de efectuar uma religação dos saberes como este autor propõe, devolvendo-lhes a sua vocação originária para promover a universalidade do saber. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1129 de 19 de Julho de 2023.

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Autoria:Carlos Bellino Sacadura,24 jul 2023 8:01

Editado porClaudia Sofia Mota  em  24 jul 2023 18:44

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