Quando se fala de reordenamento das autarquias locais o pensamento de muito boa gente voa logo para o reagrupamento dos atuais municípios em regiões. E há grupos bem localizados que, mais do que o reagrupamento em si, sonham com uma Câmara Alta onde possam realizar sonhos de poder dificilmente realizáveis no arranjo vigente.
Há-os, também, que anelam por um aprofundamento do municipalismo, seja pela via da desconcentração, seja pela da descentralização, com o advento de delegações municipais (desconcentração) ou de verdadeiras autarquias inframunicipais (descentralização).
Salta à vista que existe um consenso à volta da questão do aprofundamento da experiência de descentralização iniciada na última década do século passado. As razões é que não serão tão consensuais como isso: sonhos de uma sinecura como Senador da República; ampliação das hipóteses de se alcandorar a eventuais prebendas integrando um executivo regional; realização do sonho de se consolidar como cacique municipal; desejo de se ter o poder mais próximo das populações e um maior controlo social dos executivos municipais; vontade de ver as comunidades locais participando da costura do orçamento local (diretamente) e do orçamento nacional de investimentos do plano (por via indireta). No fundo, tudo leva a concluir que se é verdade que não podemos estar como gostaríamos, não será menos verdadeiro que nada impede que trabalhemos para que não continue tudo como está, naquela base fatalista de “deixar como está para ver como fica”. Anseios e desejos legítimos, haja em vista as conquistas das comunidades desde a instalação do poder local a esta parte.
Os poderes, estes, também não parecem ser contra um aprofundamento da descentralização, apesar de alguns indícios de miopia que se manifestam aqui e acolá, sempre que aparecem propostas em cima da mesa. São grupos parlamentares que desconfiam que as propostas levam água no bico (e, por vezes, levam mesmo); são deputados que, individualmente ou pelos círculos, que acham que o timing é manhoso (e, não raras vezes, é); são grupos de interesse que se estão dando bem com o status quo e que querem que tudo fique como está; são autarcas que receiam ver seu poder esvaziado (ou drasticamente reduzido) e que pisam no freio; enfim, grassa a desconfiança na classe política e na sociedade civil. Uma desconfiança castrante e bloqueadora.
E vamos deixar tudo como está para ver como fica? Mesmo sabendo que há reformas que podem conduzir à melhoria do rendimento da administração do território, potenciando níveis interessantes de eficácia e efetividade? Creio que a resposta é óbvia.
Como fazer então para ultrapassar a desconfiança e se avançar para a construção dos necessários consensos à volta do tema?
Creio que o problema maior tem sido a maneira como temos encarado a questão da desconfiança. Digo questão e não problema, porque, de facto, ela não é um problema. E não é, porque um problema é uma situação que contém em si mesma uma solução, o que não é o caso da desconfiança.
A verdade é que a desconfiança é uma terrível circunstância restritiva contingencial. É como uma dona de casa querer que o dia tenha uma vigésima quinta hora para poder dar conta das lides da casa; um Governo ou Câmara Municipal querer uma duplicação administrativa de mandato para poder dar conta das promessas feitas durante a campanha eleitoral; é como querermos, em franca crise de inflação galopante, continuar com o mesmo nível de gastos quando o nosso salário já antes dificilmente chegava ao final do mês. E face a um fator restritivo contingencial não vale a pena bater com a cabeça na parede a ver se sai uma solução. E, no entanto, a saída é óbvia: HÁ QUE CONTORNAR O FACTOR RESTRITIVO. Tão simples como isso.
E, no caso vertente, tudo leva a crer que será preciso pôr de pé um laboratório para a busca de uma estratégia que, ao mesmo tempo, desarme os desconfiados e forneça soluções para uma nova vaga de descentralização e consequente aprimoramento do poder local.
Para o efeito, a região política de Santiago Sul parece ser o espaço ideal para levar a cabo o experimento.
Desde logo por ser a ser a mais importante região do país. Se isso não bastasse, é uma região cujos municípios, no momento, são geridos por autarcas de um mesmo partido, havendo, por outro lado, uma maioria parlamentar de deputados de uma outra força política. Pode parecer paradoxal, mas me parece um quadro equilibrado para aprovar a instalação de um laboratório para produzir resultados que possam conferir uma direção, um sentido, ao processo conducente a uma nova vaga de descentralização.
A Região Metropolitana da Grande Praia reagruparia os municípios da Praia, da Ribeira Grande e de São Domingos sob um órgão de coordenação que organizaria as sinergias, evitando qualquer perda de energia. Creio ser fundamental salvaguardar que essa nova organização não deve implicar qualquer impacto no total das transferências ordinárias do Tesouro para os três municípios.
Os recursos necessários para tocar a Região contarão, para além das referidas transferências, com o resultado da melhoria da capacidade tributária da região – impostos locais, derramas e taxas atualizadas pelos serviços prestados a pedido dos operadores. A participação nos impostos e taxas cobrados pelo Estado na área da região seriam objeto de aturado estudo, não podendo servir de amparo para não deixar deslanchar o processo.
Na mesma medida que os municípios se reagrupam para dar corpo a uma entidade supramunicipal, assim também os municípios se desdobrarão em autarquias inframunicipais, levando a administração para mais perto das demandas das comunidades. Compreender-se-á que haja alguma cedência de poder dos municípios para a Região e a concessão de algumas competências para as autarquias inframunicipais (Junta de Freguesia, Circunscrição Administrativa de base, Submunicípio ou outra que se aprovar, à condição de os respetivos titulares passarem pelo crivo das urnas). O processo democrático não pode sofrer nenhuma ranhura. A condução das autarquias (supra e inframunicipais) deve passar, assim como a das Câmaras Municipais, pelo crivo das urnas.
Haverá Presidentes de Câmara que, temendo uma redução da sua influência, se sentirão tentados a bloquear a reforma? Certamente. Há muito que se vem captando tiques de caciquismo, um certo cheirinho a curral eleitoral, males contra os quais teremos de estar vacinados.
Diria a esses recalcitrantes, citando Johnny De’ Carli, que “tudo o que merece ser feito, merece ser bem feito. Nada louvável se obtém sem algum sacrifício”.
E mais: que eles estão no lugar certo para entrar na história como notórios agentes de mudança. Não é verdade que as populações estariam melhor servidas? Que a administração do território seria mais eficaz e, sobretudo, mais efetiva? Que se tivéssemos já esta forma de organização teríamos ajudado muito melhor (com mais eficácia e maior efetividade) as pessoas carentes durante a pandemia do Covid 19?
Se há forma de fazer mais com menos, ela passa por uma ampla reforma do sistema de administração do território, por uma nova vaga de descentralização, por uma opção que reagrupe municípios, por um lado, e que aposte em autarquias inframunicipais, por outro.
Uma Região Metropolitana da Grande Praia, as Câmaras Municipais da Praia, da Ribeira Grande e de São Domingos, mais uma rede de autarquias inframunicipais, funcionando em network, podem funcionar como um grande laboratório para embasar futuras opções de organização da administração do território. Pessoalmente, não tenho dúvidas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1134 de 23 de Agosto de 2023.