Seja como for, o convite que me foi formulado pelo seu digno autor e colega investigador, Carlos Filipe Gonçalves, a quem sinceramente agradeço, traduz e testemunha, a meu ver, uma amizade alicerçada na cidade do Mindelo, ainda nos tempos da adolescência, na popularmente conhecida Rua de Papa Fria (Rua dos Descobrimentos), e, mais tarde, forjada, na Cidade da Praia, por via, é certo, de uma colaboração pontual e eficaz, na área da investigação musical. Nessa parceria duradoira pautada, essencialmente, pela troca de pontos de vista, informações e diálogo, cada um, naturalmente, portador do seu próprio estilo e da sua própria visão da música cabo-verdiana, se norteia por marcos referenciais teóricos, paradigmas e ferramentas metodológicas diferenciados, que se cruzam, se combinam e se complementam, no âmbito da interdisciplinaridade.
À partida, o prefaciador, pela sua competência e autoridade, legitima a obra e, eventualmente, confere-lhe algum valor acrescentado ou mais-valia, socorrendo-me, agora, de um elucidativo conceito marxista. Todavia, no caso em apreço, não se aplica o princípio legitimador ora referenciado, porquanto o persistente e aturado trabalho de investigação de Carlos Gonçalves iniciado em 1993, em torno do campo de estudo da música, em simultâneo com o jornalismo e a prática musical, dispensa qualquer testemunha abonatória, por mérito próprio do pesquisador. A música cabo-verdiana, enquanto mecanismo responsável pela construção de processos sociais e campo de produção cultural dinâmico e heterogéneo, é, sem qualquer sombra de dúvida, um sistema aberto marcado, cada vez mais, pela diversidade, e, ao mesmo tempo, um produto da interculturalidade, que, de resto, se tem conseguido afirmar e consolidar, da independência nacional a esta parte, tanto no país como na diáspora, particularmente, desde o limiar dos anos 90 do século XX, num processo permanente de preservação, renovação e inovação da sua componente tradicional.
Aliás, por conta das relações interculturais, que se vivem intensa e diferenciadamente em todo o lado, e, em especial, no território nacional e na diáspora, a música, hoje em dia, em pleno contexto de redes digitais e cada vez mais cosmopolita, não se desenvolve num espaço fechado e sem janelas para o mundo, a despeito de circunstancialismos e constrangimentos de vária ordem que os processos inerentes de globalização económica e cultural engendram. Com efeito, num mundo dominado pela interculturalidade, que, de modo avassalador, carateriza as sociedades modernas, em razão dos contextos históricos, culturais, identitários e sociológicos respetivos, se inscreve esse esforço pioneiro e simbólico absolutamente notável de consagrados intelectuais e estudiosos cabo-verdianos d´outrora tão imprescindível à alavancagem da investigação na área da música nacional entendida, também, como fonte de mutações sociais e espaço cruzado de culturas. Reconhecido o mérito histórico dos ditos pioneiros ou “cabouqueiros” da investigação musical no país, através das primeiras incursões de intelectuais e estudiosos nacionais e estrangeiros, em vários periódicos, desde os finais da primeira década do século XX, numa espécie de antessala, saliente-se, no entanto, que as investigações mais consistentes e sistemáticas do compósito e diversificado universo musical só teriam tido início, na segunda metade dos anos 70, conquanto ainda de forma tímida e localizada. A julgar pelas fontes credíveis, as investigações, de facto, ter-se-iam iniciado em S. Vicente, com o conjunto musical Kolá, fundado no Mindelo, S. Vicente, em 1975, com o objetivo de estudar a música cabo- verdiana e as suas raízes africanas, e, depois, a partir de 1978, na ilha de Santiago com Carlos Alberto Martins (Katchas) e Bulimundo e Orlando Monteiro Barreto (Pantera), já na década de 90, que estilizaram o funaná e o batuque, respetivamente, apoiados, também, em pesquisas de campo. Mais tarde, na mesma linha de investigação e de inovação da música tradicional, registar- se-ia o inegável contributo de outros estudiosos do folclore da ilha do Fogo como Ramiro Mendes, Lívio Lopes, Kim Alves, Talulu e Kwame Gamal Monteiro, entre outros compositores e intérpretes musicais. Daí que este exaustivo Dicionário da Música em Cabo Verde, da autoria do jornalista, músico e investigador, Carlos Gonçalves, já dado à estampa, se insere, perfeitamente, no âmbito da construção processual de uma historiografia da música cabo-verdiana entendida como “facto social total”, na expressão de Marcel Mauss (1924), que privilegia a pluridimensionalidade dos fenómenos sociais, considerados como totais e únicos, numa abordagem sociológica.
Dirigido, essencialmente, a um conjunto diversificado de leitores, a obra, de 800 páginas, contém mais de 3000 entradas/verbetes e abrange o público, em geral, e, em especial, aquele ligado à música designadamente, investigadores da música e das ciências sociais e humanas, académicos, intelectuais e estudantes, entre outras categorias. Perante a notória carência de estudos na área musical, e, outrossim, reconhecendo a necessidade de se proceder à recolha e sistematização de diversa informação sobre o património musical nacional relativo ao período compreendido entre 1850 e 1922, nos mais variados domínios, o autor da obra de referência, Kab Verde AZ. Música & Tradições, descreve e analisa, de forma sistematizada, os géneros e estilos musicais regionais e nacionais, assim como as práticas expressivas mais significativas, agrupamentos musicais e respetivos instrumentos, autores de letras, arranjadores e produtores, compositores, instrumentistas, intérpretes, espaços de performance e prática musical e, ainda, uma série de composições tradicionais emblemáticas devidamente contextualizadas.
Igualmente, o Dicionário Enciclopédico, ou o Dicionário com vocação enciclopédica, na expressão de Roland Barthes (Cherbourg – Octeville, 1915 – Paris, França, 1980), escritor, sociólogo e semiólogo francês, contém mais de 150 fotos, quadros, tabelas e ilustrações e traz, na parte final, uma lista bibliográfica e documental, bem assim um amplo, clássico e simbólico repertório musical, que ascende a oito centenas de composições, bem assim uma incursão sobre os percursos dos protagonistas e das instituições correlatas, na sua evolução histórica e nas suas interações. Registo, com enorme satisfação, regozijo e como facto inédito, a introdução nas entradas desta obra de fôlego da categoria de investigadores, pesquisadores, estudiosos e especialistas das ciências musicais a que pertenço. Num gesto digno de nota, o livro assinala devidamente, o percurso e a obra de alguns pesquisadores e estudiosos, que, deveras, tem assumido um papel relevante na definição, caraterização e afirmação do universo musical cabo- verdiano, a partir de perspetivas disciplinares distintas e complementares. Privilegiando uma visão pluralista, dinâmica, processual e abrangente da música, Carlos Filipe Gonçalves, portador de uma sólida cultura musical, analisa, igualmente, uma série de tradições cabo-verdianas e instituições ligadas à música, na linha da noção sociológica de totalidade social. Associada à perspetiva culturalista do seu autor, também ele antigo baterista do conjunto mindelense West 4 Side, o livro, que, pela sua abrangência, natureza e conteúdo, ultrapassa os marcos ou fronteiras de um dicionário, tem uma relevante dimensão diaspórica e transnacional, traz à colação, de forma sistematizada, e analisa um número relativamente elevado de músicos de origem cabo- verdiana nascidos na emigração e radicados nos Estados Unidos da América, sobretudo, e na Europa, nas suas práticas e relações com os respetivos produtos musicais.
Recheado de informações pormenorizadas sobre a música do arquipélago, suportadas por uma consistente base de dados pessoal construída pacientemente, este importante Dicionário de consulta assume-se, na minha perspetiva, como uma imprescindível ferramenta de trabalho ao serviço de músicos, investigadores, estudiosos, académicos, estudantes e todos quantos se interessem pelo conhecimento aprofundado da música cabo-verdiana, de uma maneira geral. Sem, todavia, pretender esgotar o diversificado universo musical nacional, esta obra enciclopédica, à nossa dimensão, vem, seguramente, reforçar e complementar os vários estudos setoriais sobre a música cabo-verdiana efetuados, sobretudo nos últimos anos quinze anos, por investigadores nacionais e estrangeiros. Diante de uma obra de tamanha envergadura de consulta obrigatória, garantida pela sua qualidade, arcabouço concetual, rigor metodológico, densidade e riqueza informativa, sobretudo, sem precedentes na historiografia da música cabo-verdiana e que que, por certo, prestigia a comunidade científica, valoriza os investigadores musicais e enriquece a literatura.
Versão integral do texto de apresentação do livro Kab Verd Band AZ. Música & Tradições de Carlos Filipe Gonçalves
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1139 de 27 de Setembro de 2023.