A eventual aprovação, por parte dos Deputados do GP do MpD, do projecto de resolução, nos termos em que está formulado, a concretizar-se, seria, no entanto, de uma contradição e incoerência gritantes.
De facto, revelaria uma expressa manifestação de cumplicidade, por parte deste partido político, de matriz democrática e liberal, em justificar o Regime de Partido Único, facto histórico indubitavelmente registado em Cabo Verde entre 1975 e 1990, mas revertido, inexoravelmente, por decisão popular, em 1991.
É que, na verdade, seja o surgimento do MpD, seja a sua consagração, a 13 de Janeiro de 1991, são frutos da constatação de que o modelo político anterior de regime de partido único, era erróneo e estava obsoleto. E foi isso mesmo, que os cabo-verdianos disseram, de forma livre e inequívoca, a 13 de Janeiro de 1991. E, para que não houvesse dúvidas, confirmaram-no a 14 de Fevereiro, do mesmo ano, com a escolha do primeiro Presidente da República, eleito, democraticamente.
Vir, agora, em plena vigência do regime democrático, num Estado de Direito, conforme o consagrado na Constituição da República de 1992 (CR), pedir aos legítimos representantes do Povo de Cabo Verde reunidos em sessão plenária da Assembleia Nacional, que aprove tal Resolução, é submeter o MpD, partido do Governo, aos ditames, à estratégia e ao calendário, do PAICV, na Oposição; é passar a esta força política um documento de salvo-conduto, para, em nome da Nação – uma nação com séculos de existência e com um futuro auspicioso – esta se declare refém de um passado recente, que a mesma (nação) entendeu, livre, soberana e significativamente, ultrapassar.
Em termos políticos, o projecto de Resolução, tal como apresentado, é, efectivamente e salvo o devido respeito e opinião mais sustentada, um autêntico pacto leonino, em que uma das parte ganha tudo, e a outra fica a dever, ainda, a honra de ter participado do prândio.
A disciplina partidária do voto não pode ir ao ponto de violar a consciência do Deputado ou os princípios e valores que fundam e norteiam a Organização.
Mormente, quando o pretendido choca com os parâmetros expressamente fixados pela CR.
Diz-se que a Democracia está em crise, um pouco por todo o lado.
Não temos, porém, que copiar ou estar na moda, como se costuma referir, alegremente, quando se trata de situações graves e que recomendam redobrada ponderação.
A coerência é a matriz inexpugnável da credibilidade.
Que o PAICV pretenda ser coerente com o seu passado, é natural, legítimo e expectável, e de se respeitar, mas sem aderir.
Que arraste o MpD para uma deriva política, a ponto de pôr em causa a sua sobrevivência como Partido Político de referência liberal e democrática é, a meu ver, estender uma passadeira vermelha, que o partido que abracei desde a primeira hora e – perdoem-me a imodéstia – ajudei a crescer, deveria, terminantemente, recusar a pisar.
E podem crer, mui sinceramente, que sou daqueles que reconhecem que Amílcar Cabral foi uma figura notável do Século XX – eventualmente, um homem de excepção – que conduziu, com sucesso, uma luta armada e política de libertação nacional, e que teve um papel de primeiro plano para a consumação da Independência de Cabo Verde, bem como no derrube do salazarismo, em Portugal.
Respeitar Amílcar Cabral e reconhecer ou admirar, até, a sua acção, como estratega daquela luta armada e política, não poderá levar-nos, no entanto, a endeusá-lo.
Pelas qualidades humanas que me dizem, ele possuía, creio bem, que ele não aceitaria tal prebenda.
Comemorar o centenário do nascimento de Amílcar Cabral, e fazê-lo, com decência, não implica, certamente, adoptar uma Resolução parlamentar, do estilo. Porque a Resolução viria impor um consenso que não existe na sociedade cabo- verdiana. Está, assim, a falsear a realidade, que, no dizer dos marxistas, é o único critério da verdade.
Eu e muito bons amigos meus temos divergências ideológicas, de monta, e, nem por isso deixamos de conviver, em paz, e de cooperar uns com os outros. A divergência ideológica não significa a negação da História, bem pelo contrário.
E mais: contribui, de forma admirável, para o enriquecimento da História comum.