A muitos – com a tua música – soubeste falar de um amor simples a que estava sempre perto de nós. De uma paz que só descobríamos depois de por ela sermos arrebatados. Mas o interessante é que tudo acontece sempre de forma natural, em melodias que connosco convivem em interiores guardadas, ou fitxadu - como mais a frente veremos.
Lembro-me claramente da euforia da “chuva de estrelas” e depois da “eurovisão” … todos os portugais torciam pela menina da voz doce e que encantava todos. Tudo estava preparada para nascer a nova popstar da sempre faminta indústria musical. Brilhava o néon dos anos 90 e as receitas da indústria passavam por fórmulas financeiras que levavam a estampa Sara.
Acontece então o teu primeiro ato de sensata escolha. Foste suficientemente lucida e fiel ao que na altura certamente já acreditavas. Seguiste a sua verdade musical procurando brandamente o que querias encontrar. E assim foi. Provavelmente o que na altura acreditavas que seria a porta para novas estradas .
Sara Tavares grava o seu primeiro trabalho com o grupo Shout onde por entre amigos e vozes, celebravam a vida em sonoridades gospel.
A década de 90 é feita de descobertas, entregas e experiências musicais ate que em 99 – ano marcante – grava “Mi Ma Bó” álbum produzido pelo congolês Lokua Kanza. Sara descobre terreno musical fértil e, zonas de conforto artísticas e pessoais começam a nascer … de certo modo: Sara descobre-se. Conforme confessa em entrevista dada: “descobri uma África que me fez ligar ao mundo.” A música africana molda cada vez mais o universo da cantautora e até gravar o seu segundo álbum – “Balance” – entrega-se em definitivo a musica e cultura da terra dos seus pais – Cabo Verde. Procura beber dos músicos, mexer no teatro e tudo é mistura mansa em doce equilíbrio…
“Balance” já foi gravado pela editora “world connetion” – uma das principais da chamada “world-music”. A partir de então borboleta voá… el abri asa e voá…
Tudo já era mistura e o todo era sempre curioso, onde tudo docemente coabitava. As raízes misturavam-se á vivência e as cerejas começam a ter outro sabor.
Em 2007 Sara grava um DVD ao vivo em Lisboa. Lembro-me claramente da sensação que tive ao ouvir o tema “Lisboa Kuya” … estar a ver uma cidade a ser referenciada de forma tão preciosa – onde tudo fazia sentido ser 1+1… uma cidade… uma geração.
Seguiram-se os álbuns “Xinti” e “Fitxadu” onde um tipo de doce revolução já antes iniciada, era cada vez mais firmada em cada palavra dos poemas de Sara e, demonstrada em cada atitude…sempre em forma de sorriso – o mais belo pois sabia a contemplação e sinceridade, a vida e intensidade.
È claro e com certezas marcadas: a tal Lisboa Crioula, ou a Nova Lisboa de hoje , foi pioneiramente lida por Sara e delicadamente passada à geração lusófona que chegava. Abriu caminhos- No dizer do jornalista e critico musical português Vitor Balenciano: terá sido certamente “influencia para nomes como Dino, Aline, Kalaf, Selma, Toty, Nástio, Batida” … ou seja os soldados musicais da “Lisboa Kuya”. E de toda uma Lusofonia reinante, que já não era lusa. Foi (…talvez so agora…) reconhecidamente referência…
Este ano deixou-nos o momento “kurtido”, que assim como muitos outros ficara “Fitxadu” – fitxadu dentu nos…guardadu na nos petu…
Prematuramente parte, intensamente viveu, connosco ficará a menina de diz coisas bonitas, de forma doce , mas que promovem tanto pensar.
Na verdade, soa coisas que vem sempre di um korason lebi…
Sara dizia sempre: o prazer da música é para ser usado… usemo-lo pois … mas também dizia que “música coisa seria”.
O teu legado Mana Sara , será nosso cuidado e o teu sorriso nossa lembrança que perdurará a musicar a menina que quis viver a vida dia após dia, aproveitando-a bailando entre dois palcos e muitas borboletas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1147 de 22 de Novembro de 2023.