Tratar das relações entre os dois principais poderes reinantes na sociedade cabo-verdiana é sempre um empreendimento que exige cautelas. É um distintivo do nosso sistema político que tanto a democracia revolucionária como a democracia pluralista não permitiram a interferência religiosa na condução dos assuntos políticos, buscando no âmbito operacional do direito as condições legais que garantissem, de forma positiva, a sua separação do domínio religioso. Do ano 1975 até o ano 2000, a religião, na ótica do Estado, foi uma questão interna que se ia privatizando com o avançar da secularização da sociedade. Entretanto, os dez primeiros anos do século XXI trouxeram novidades em relação a esta matéria.
Num contexto internacional marcado pelo combate ao terrorismo, que assumiu em alguns casos conotações religiosas, o Estado cabo-verdiano evocou a condição cristã da cabo-verdianidade, recuperando a vantajosa condição de Cabo Verde como reduto do cristianismo na África Ocidental, na mesma medida que ganhava consistência o “projeto de renacionalização, em bases firmemente cosmopolitas, num cenário político-ideológico específico em que, por exemplo, não causaria repugnância pleitear uma aproximação europeia e reiterar o vínculo africano” como sustentou Gabriel Fernandes.
No entanto, esta refuncionalização identitária, que atualizou o histórico legado cristão tornando-o política e simbolicamente significativo, demonstrou, na altura, que o Estado cabo-verdiano parecia carecer, ainda, de uma específica confissão religiosa para a realização dos seus desígnios. Deste modo, paradoxalmente, a busca do alinhamento estratégico com as forças dominantes da arena internacional, «podia» fragilizar a condição democrática do Estado de Cabo Verde.
Na altura dizia-se «podia», porque se afigurava que a condição democrática futura do Estado cabo-verdiano, enquanto entidade que administra, suportado no direito, o pluricentrismo da vivência moderna no arquipélago, passava também pela abertura ao diálogo com as outras confissões religiosas, sem esquecer a massa dos que não professam uma religião.
Por sua vez, na primeira década do seculo XXI, a Igreja Católica estava ciente que, assim como no passado, a condição demográfica maioritária e a sua posição de força perante o Estado, fornecia-lhe outros elementos no caucionar dos seus intentos evangelizadores. Entretanto, também estava ciente do que poderia significar o novo quadro relacional que se desenhava então, dado que, de um lado da mesa, dispunha das lições apreendidas das ligações com o círculo político no passado, e, do outro lado da mesa, estavam os desafios internos que a diversidade religiosa, em crescendo, lhe ia colocando.
Deste modo, quando a História nos questionar como foi possível a assinatura do Acordo entre a República de Cabo Verde e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica em Cabo Verde, de 10 de junho de 2013, poderemos afirmar que o sentido deste acontecimento tem uma dimensão temporal, temática e social.
As contingências temporais contemporâneas criaram condições propicias para que o passado fosse revisitado, e onde se via a ação social alienadora da Igreja ao serviço dos poderes coloniais, passou-se a ver os contributos seculares na formação integral do homem cabo-verdiano. Em termos temáticos, da laicidade concebida como um mecanismo de entrave e de combate à dinamização religiosa na sociedade, passou-se para uma conceção da laicidade como uma racionalização estatal, em que os limites da regulamentação estatal do fenómeno religioso necessitam estar formalizados e implicam obrigações e deveres tanto ao Estado como às Igrejas.
Em termos sociais surgiram novos atores políticos e eclesiásticos que tinham pela frente um contexto marcado pela deslocação da problemática da liberdade da esfera política para a esfera cultural; que perspetivou a elevação das igrejas à condição de intervenientes da sociedade civil com responsabilidades sociais na construção de uma cultura de paz e tolerância e no combate aos problemas sociais, como a violência; e que consensualizou, pelo menos em termos discursivos, que a civilização cabo-verdiana possui um núcleo normativo de cariz judaico/cristão que molda continuamente as estruturas sociais, políticas, culturais e as identidades coletivas.
Reunidas essas condições, de novo se reescrevia a história de Cabo Verde com tintas estatais e eclesiásticas. Depois da Bula Pro excellenti praeminentia de 31 de janeiro de 1533, que criou a diocese de Santiago e conferiu dignidade eclesiástica à cidade de Ribeira Grande; da Concordata de 1778, que regulou os benefícios eclesiásticos em todo o reino de Portugal, abrangendo também Cabo Verde; da concordata de 30 de julho 1848, que estabelecia o funcionamento dos seminários e o foro eclesiástico, e que, indiretamente, conferiu enquadramento à constituição do Seminário-Liceu de São Nicolau; da Concordata e do Acordo Missionário de 7 de maio de 1940, que pôs termo ao «conflito institucional» entre Portugal e a Santa Sé gerado pela Lei de Separação da Igreja e do Estado, de 20 de Abril de 1911, e que teve o condão de facilitar a ultrapassagem de uma perspetiva missionária exterior para, através da territorialização da ação pastoral fornecer um enquadramento mais adequado e voltado para a afirmação da realidade autóctone, tendo, por isso, embasado a edificação ao novo Seminário Diocesano de São José na cidade da Praia; o dia 10 de junho de 2013 viu nascer um novo documento histórico que assumiu a forma de um acordo jurídico que impactou tremendamente o vazio jurídico reinante nas relações entre o Estado de Cabo Verde a e Santa Sé, desde 5 de julho de 1975.
Este acordo fechou o capítulo das incongruências da República cabo-verdiana em relação ao catolicismo local, em particular, e à questão religiosa nacional, no geral. Esta será a sua marca histórica. A sua assinatura tornou absolutamente necessária a atualização do ordenamento jurídico nacional sobre a questão religiosa, materializada na Lei nº. 64/VIII/2014, que estabelece o regime jurídico da liberdade de religião e de culto em Cabo Verde, de 16 de maio de 2014.
Em suma, se o acordo jurídico reduziu a complexidade da relação entre o Estado e a Santa Sé, aumentou a complexidade do subsistema religioso em Cabo Verde. Favoreceu o pluralismo religioso, mormente nas dimensões da tolerância e da liberdade religiosas, e pós a nu a fragilidade da terceira dimensão do pluralismo religioso, as relações entre as confissões religiosas. Os seus dez anos de existência lembram, ao menos desatentos, que a procissão do pluralismo religioso em Cabo Verde ainda vai no adro.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1156 de 24 de Janeiro de 2024.