10 Anos do Acordo Jurídico entre o Estado de Cabo Verde e a Santa Sé – Que ilações?

PorAdilson F. Carvalho Semedo,29 jan 2024 7:49

Adilson F. Carvalho Semedo - Professor Auxiliar da FCSHA – Uni-CV – Cientista Social/Sociólogo
Adilson F. Carvalho Semedo - Professor Auxiliar da FCSHA – Uni-CV – Cientista Social/Sociólogo

Na conferência sobre os 10 anos do Acordo entre a República de Cabo Verde e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica em Cabo Verde, de 10 de junho de 2013, organizada pela entidade governamental responsável pelas relações com as confissões religiosas, em parceria com a paróquia de São Vicente e a vigararia da ilha de São Vicente, abordamos as consequências sociais do referido acordo.

Tratar das relações entre os dois principais poderes reinantes na sociedade cabo-verdiana é sempre um empreendimento que exige cautelas. É um distintivo do nosso sistema político que tanto a democracia revolucionária como a democracia pluralista não permitiram a interferência religiosa na condução dos assuntos políticos, buscando no âmbito operacional do direito as condições legais que garantissem, de forma positiva, a sua separação do domínio religioso. Do ano 1975 até o ano 2000, a religião, na ótica do Estado, foi uma questão interna que se ia privatizando com o avançar da secularização da sociedade. Entretanto, os dez primeiros anos do século XXI trouxeram novidades em relação a esta matéria.

Num contexto internacional marcado pelo combate ao terrorismo, que assumiu em alguns casos conotações religiosas, o Estado cabo-verdiano evocou a condição cristã da cabo-verdianidade, recuperando a vantajosa condição de Cabo Verde como reduto do cristianismo na África Ocidental, na mesma medida que ganhava consistência o “projeto de renacionalização, em bases firmemente cosmopolitas, num cenário político-ideológico específico em que, por exemplo, não causaria repugnância pleitear uma aproximação europeia e reiterar o vínculo africano” como sustentou Gabriel Fernandes.

No entanto, esta refuncionalização identitária, que atualizou o histórico legado cristão tornando-o política e simbolicamente significativo, demonstrou, na altura, que o Estado cabo-verdiano parecia carecer, ainda, de uma específica confissão religiosa para a realização dos seus desígnios. Deste modo, paradoxalmente, a busca do alinhamento estratégico com as forças dominantes da arena internacional, «podia» fragilizar a condição democrática do Estado de Cabo Verde.

Na altura dizia-se «podia», porque se afigurava que a condição democrática futura do Estado cabo-verdiano, enquanto entidade que administra, suportado no direito, o pluricentrismo da vivência moderna no arquipélago, passava também pela abertura ao diálogo com as outras confissões religiosas, sem esquecer a massa dos que não professam uma religião.

Por sua vez, na primeira década do seculo XXI, a Igreja Católica estava ciente que, assim como no passado, a condição demográfica maioritária e a sua posição de força perante o Estado, fornecia-lhe outros elementos no caucionar dos seus intentos evangelizadores. Entretanto, também estava ciente do que poderia significar o novo quadro relacional que se desenhava então, dado que, de um lado da mesa, dispunha das lições apreendidas das ligações com o círculo político no passado, e, do outro lado da mesa, estavam os desafios internos que a diversidade religiosa, em crescendo, lhe ia colocando.

Deste modo, quando a História nos questionar como foi possível a assinatura do Acordo entre a República de Cabo Verde e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica em Cabo Verde, de 10 de junho de 2013, poderemos afirmar que o sentido deste acontecimento tem uma dimensão temporal, temática e social.

As contingências temporais contemporâneas criaram condições propicias para que o passado fosse revisitado, e onde se via a ação social alienadora da Igreja ao serviço dos poderes coloniais, passou-se a ver os contributos seculares na formação integral do homem cabo-verdiano. Em termos temáticos, da laicidade concebida como um mecanismo de entrave e de combate à dinamização religiosa na sociedade, passou-se para uma conceção da laicidade como uma racionalização estatal, em que os limites da regulamentação estatal do fenómeno religioso necessitam estar formalizados e implicam obrigações e deveres tanto ao Estado como às Igrejas.

Em termos sociais surgiram novos atores políticos e eclesiásticos que tinham pela frente um contexto marcado pela deslocação da problemática da liberdade da esfera política para a esfera cultural; que perspetivou a elevação das igrejas à condição de intervenientes da sociedade civil com responsabilidades sociais na construção de uma cultura de paz e tolerância e no combate aos problemas sociais, como a violência; e que consensualizou, pelo menos em termos discursivos, que a civilização cabo-verdiana possui um núcleo normativo de cariz judaico/cristão que molda continuamente as estruturas sociais, políticas, culturais e as identidades coletivas.

Reunidas essas condições, de novo se reescrevia a história de Cabo Verde com tintas estatais e eclesiásticas. Depois da Bula Pro excellenti praeminentia de 31 de janeiro de 1533, que criou a diocese de Santiago e conferiu dignidade eclesiástica à cidade de Ribeira Grande; da Concordata de 1778, que regulou os benefícios eclesiásticos em todo o reino de Portugal, abrangendo também Cabo Verde; da concordata de 30 de julho 1848, que estabelecia o funcionamento dos seminários e o foro eclesiástico, e que, indiretamente, conferiu enquadramento à constituição do Seminário-Liceu de São Nicolau; da Concordata e do Acordo Missionário de 7 de maio de 1940, que pôs termo ao «conflito institucional» entre Portugal e a Santa Sé gerado pela Lei de Separação da Igreja e do Estado, de 20 de Abril de 1911, e que teve o condão de facilitar a ultrapassagem de uma perspetiva missionária exterior para, através da territorialização da ação pastoral fornecer um enquadramento mais adequado e voltado para a afirmação da realidade autóctone, tendo, por isso, embasado a edificação ao novo Seminário Diocesano de São José na cidade da Praia; o dia 10 de junho de 2013 viu nascer um novo documento histórico que assumiu a forma de um acordo jurídico que impactou tremendamente o vazio jurídico reinante nas relações entre o Estado de Cabo Verde a e Santa Sé, desde 5 de julho de 1975.

Este acordo fechou o capítulo das incongruências da República cabo-verdiana em relação ao catolicismo local, em particular, e à questão religiosa nacional, no geral. Esta será a sua marca histórica. A sua assinatura tornou absolutamente necessária a atualização do ordenamento jurídico nacional sobre a questão religiosa, materializada na Lei nº. 64/VIII/2014, que estabelece o regime jurídico da liberdade de religião e de culto em Cabo Verde, de 16 de maio de 2014.

Em suma, se o acordo jurídico reduziu a complexidade da relação entre o Estado e a Santa Sé, aumentou a complexidade do subsistema religioso em Cabo Verde. Favoreceu o pluralismo religioso, mormente nas dimensões da tolerância e da liberdade religiosas, e pós a nu a fragilidade da terceira dimensão do pluralismo religioso, as relações entre as confissões religiosas. Os seus dez anos de existência lembram, ao menos desatentos, que a procissão do pluralismo religioso em Cabo Verde ainda vai no adro. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1156 de 24 de Janeiro de 2024.

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Autoria:Adilson F. Carvalho Semedo,29 jan 2024 7:49

Editado porAndre Amaral  em  29 jan 2024 7:49

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