A integração regional na CEDEAO confrontada a novos desafios

PorJosé Luís Rocha,19 fev 2024 8:01

José Luis Rocha, Embaixador de carreira
José Luis Rocha, Embaixador de carreira

O que inspira a situação corrente na sub-região, entre crises sucessivas e a necessidade de um debate refundador da organização sub-regional.

A integração regional tem na dimensão institucional que a sustenta, o instrumento da sua materialização e operacionalização. A existência de textos fundadores que definem os objetivos e que fixam regras comuns a serem observados por todos os Estados membros, é a condição fundamental para a constituição, funcionamento e desenvolvimento de qualquer organização, neste caso a CEDEAO e a sua região.

O processo de integração europeu que tem sido paradigmático e referência para os casos de integração africana e não só, pode ser citado em exemplo quando alude à condição de membro da União europeia associada à obrigação de critérios de convergência políticos (valores democráticos), económicos (opção pela economia de mercado) e de funcionamento (através do acquis comunitário).

O contrário não poderia ser em relação à CEDEAO e a integração regional, neste caso como noutros, significa que as Partes sejam integráveis e, para que assim seja, a convergência de modelos de governança politica e económica, enquanto processo de integração, é necessária.

A situação atual vivida pela região e pela organização testemunha da existência de gaps (fossos) entre os textos fundadores e a pratica corrente, com relação ao modelo politico e económico da organização, assim como aos défices de convergência constitucionais, políticos e económicos entre Estados membros, que estão na base dos problemas encontrados ou, da agravação dos mesmos. Tais gaps ou fossos justificam a revisitação de certos parâmetros estruturantes e fundadores da integração regional oeste africana.

Questiona-se amiúde a intervenção da CEDEAO nos campos político e de segurança, como que a Organização deveria cingir-se à integração económica, seu objetivo primário. Como se o desenvolvimento económico funcionasse num vacum laboratorial fora do seu contexto político, desmentindo a doutrina que reforça a relação mutuamente influenciadora entre a «Paz sustentada e o Desenvolvimento sustentável». Dito de outro modo, a CEDEAO não poderia ignorar o relacionamento e a influencia mútua entre o politico e económico. E, evoluindo nessa direção, uma diferença maior é inscrita no Tratado revisto de 1993 em relação ao Tratado original de 1975.

Ambos os Tratados definem como objetivo geral da CEDEAO a promoção da cooperação económica e o desenvolvimento em todos os campos de atividade, incluindo a livre circulação de pessoas, bens e serviços no espaço comunitário, a criação de uma tarifa exterior comum para as trocas comerciais extracomunitárias e a harmonização de politicas sectoriais.

Por sua vez o Tratado revisto de 1993, atento à realidade das questões politicas, adita os princípios fundamentais que deverão nortear o relacionamento entre os Estados membros, tais como a igualdade e a interdependência, a solidariedade e a cooperação, a não agressão entre Estados, a prossecução da paz, estabilidade, segurança regionais e a gestão pacífica dos conflitos, enfim, os valores de responsabilidade, justiça, direito humanos e promoção e consolidação dos sistemas democráticos de governança.

O Tratado revisto de 1993 no seu artigo 58, relativo à segurança regional, estipula ainda que «os Estados-Membros comprometem-se a trabalhar para salvaguardar e consolidar relações conducentes à manutenção da paz, estabilidade e segurança na região… bem como … comprometem-se a cooperar com a Comunidade no estabelecimento e no reforço de mecanismos adequados para a prevenção e resolução atempadas de conflitos intraestatais e inter-estatais…». O Artigo 58 remete por sua vez ao Protocolo de 1999, que fundamenta e cria o mecanismo de prevenção, gestão, regulação de conflitos, manutenção da paz e segurança no espaço sub-regional da CEDEAO, assim como fixa a autoridade e as condições para a sua implementação e intervenção no terreno.

Os princípios fundamentais e o mecanismo criado autorizam a mediação política da CEDEAO tendo em conta, ainda, a subsidiariedade e a complementaridade com o Sistema das Nações Unidas (Capítulos VI, VII VIII da Carta) e com a União Africana. Porém, a pratica relativa a esses princípios e mecanismo tem sido contestada, por falta de resultados em muitos casos, por ausência de tratamento igualitário em outros casos ou ainda porque nem sempre se revela inclusiva a todos os Estados membros.

A CEDEAO passa, por outro lado, por crises sucessivas motivadas pelas tensões crescentes entre a democracia e a autocracia, com a multiplicação de golpes de Estado militares e outras crises políticas que atentam ao princípio da convergência constitucional prescrito pelo Protocolo da CEDEAO sobre a Democracia e a Boa Governança, o qual orienta os Estados membros, entre outros, para praticas compatíveis com a separação dos poderes executivo, judicial e legislativo, o acesso ao poder por via de eleições livres e a garantia das liberdades de associação, manifestação e imprensa.

Não menos importante, e conforme às praticas contemporâneas e republicanas, o Protocolo estabelece também que os militares são apolíticos e submissos ao poder político reservado aos civis, competindo estes ultimos por via de partidos políticos organizados e autorizados. Por conseguinte, ao assumir o poder através de golpes de Estado e, ao tomar decisões subsequentes em nome do povo sem qualquer plebiscito que as legitime, os militares autores dos golpes estão simplesmente colocando-se à margem dos princípios da convergência constitucional referidos.

Outro principio fundamental, o Protocolo estabelece que «qualquer alteração inconstitucional é proibida, assim como qualquer modo não democrático de acesso ou manutenção no poder», o que desautoriza as tentativas ou os casos sucedidos do terceiro mandato presidencial, da suspensão ou inviabilização pela força do funcionamento das instituições e do adiamento das eleições. Essas, e outras praticas que levam à judicialização do poder, ao alistamento militar forçado de opositores ou ainda ao não respeito do estatuto da oposição, criam fraturas politicas e sociais, em última instancia contribuem para o aumento da instabilidade regional por via do somatório da erosão da governança democrática que se alastra por um número crescente de Estados membros.

Em suma, o modelo da integração regional na CEDEAO não difere dos demais. Apoia-se por um lado na ligação intrínseca entre o desenvolvimento económico e social e a paz e a segurança. Por outro lado, na convergência constitucional, macroeconómica e de politicas sectoriais para criar estabilidade e realizar o desenvolvimento sustentável na região. Sobrepõe-se o papel das autoridades políticas (no topo das quais a conferência dos Chefes de Estado e de Governo) e técnicas (nomeadamente a Comissão) com vista a orientar e implementar as medidas concorrentes com esses objetivos.

Ora, a autoridade da CEDEAO vem sendo avaliada, principalmente a sua capacidade em realizar a paz e a segurança, impor a convergência constitucional no plano da governança democrática e obter resultados tangíveis que favoreçam uma real integração económica, comercial e de politicas sectoriais. Referindo-se à crise atual criada pelo anúncio do abandono pelos Estados da Aliança do Sahel (Burkina, Mali e Níger), o Presidente da Comissão, afirmou que a CEDEAO está numa encruzilhada onde a unidade da Organização pode estar em jogo e, mesmo, a sua sobrevivência.

A CEDEAO aproxima-se do seu 50º aniversario em 2025 e, este pode ser o momento e a oportunidade para a organização encetar, em moldes a determinar, uma reforma profunda e refundador. Uma reforma regional alimentada previamente por debates e contribuições nacionais. Uma reforma para ajustar o funcionamento da organização aos desafios atuais de paz, segurança e desenvolvimento, acelerar a integração económica regional, introduzir mecanismos de governança mais democráticos e auferir uma participação igualitária e de liderança rotativa, inclusiva a todos os Estados membros, ao que corresponderia maior responsabilidade (accountability) por parte de cada um no cumprimento das regras comuns.

Essa seria, igualmente, uma oportunidade para Cabo Verde acertar de vez os ponteiros com a CEDEAO, com vista a obtenção de tratamento diferenciado previsto no Artigo 68 do Tratado revisto em relação aos Estados insulares, a fim de resolver questões essenciais quais sejam a taxa comunitária, a tarifa exterior comum, a mobilidade, a moeda e o acesso a financiamentos comunitários.

Mas para isso, antes de uma inscrição e para facilitar uma decisão na conferência dos Chefes e Estados e de Governo da CEDEAO, Cabo Verde deve internamente fundamentar e consensualizar o caderno de encargos reivindicativo e suscitar, para o efeito, através de missões ao mais alto nível, o apoio político bilateral de cada um dos restantes Estados membros, assim como o apoio técnico da Comissão.

Ninguém, objetivamente, põe em causa nem a pertença geopolítica de Cabo Verde à região oeste africana, nem as vantagens da integração regional. Mas como em qualquer outro processo trata-se de maximizar os ganhos e minimizar as perdas.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1159 de 14 de Fevereiro de 2024. 

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Autoria:José Luís Rocha,19 fev 2024 8:01

Editado porAndre Amaral  em  19 fev 2024 8:01

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