Sangram as mulheres

PorAntónia Môsso,8 mar 2024 7:57

No mês de março devem ser poucas as mulheres que escapam aos holofotes. Altura em que se tecem freneticamente atividades e comemorações em torno das mulheres e as convidam a ocupar lugares de fala. Dão música. Oferecem chocolates. Colocam uma flor atrás das suas orelhas e sussurram palavras de enaltecimento. Afinal, quem não ama as mulheres? Nada contra, desde que não se fique por aqui.

Amor é cuidados. Amor é equidade e igualdade. Liberdade. Respeito. Amor é revolução. É desse amor que necessitam as mulheres. É esse amor que interessa às mulheres.

O patriarcado e o machismo (que afeta tanto os homens como as mulheres), são os principais mentores do estado de infelicidade, exploração e insegurança das mulheres. Uma sociedade patriarcal define-se como um sistema social que assenta na dominância do sexo masculino sobre o feminino. Traduz-se numa série de privilégios, princípios, regras comportamentais, expetativas sociais, oportunidades diferenciadas entre os homens e as mulheres. O patriarcado é o habitat mais que perfeito de preconceitos. E, por ser uma construção social de poder desigualitário, nota-se no sistema político, judicial, cultural, económico e na organização dos cidadãos.

A nossa história conduziu-nos a uma sociedade com uma estrutura de organização familiar matricêntrica em que a mulher está no centro do funcionamento da vida familiar, e a figura materna é a dominante. Ela é tudo para os filhos. Esta “matrifocalidade” na esfera privada e o seu reconhecimento social, acarreta um lado perverso que é o de levar-se a pensar que tem poder, que está tudo dito e feito em relação à sua condição feminina. Ou que lhe falta uma coisita ou outra, mas é um pormenor sem importância. Não é. Só as mulheres não machistas, e consequentemente livres, sabem o que se passa com elas e do que necessitam.

As mulheres foram objetificadas. Essa objetificação da mulher bifurca em duas vias que tem tanto de fantasia como de catástrofe para as mulheres.

Uma é a de super heroína. A mulher guerreira. Mulher com habilidades transcendentes. Incansáveis. Infalíveis. Resilientes. Que conduziu a uma sobrecarga física e mental da mulher.

Trabalham estoicamente fora e dentro de casa. São as principais cuidadoras. E como poderia ser de outra forma se para isso foram treinadas desde cedo com bonecas e conjuntinhos aparentemente inocentes de trens de cozinha? Socializadas para o autossacrifício. Colocaram-se em segundo plano pelos filhos, família, e pelas expetativas sociais que sobre elas recaem e tentaram desesperadamente corresponder, sem se aperceberem que muitas delas são irrealistas, injustas e desumanas.

A outra via de objetificação, não menos ingrata para a mulher, é a erotização do seu corpo. Tornou-se a correspondência aos padrões de beleza instituídos o seu principal atributo de validação. O corpo feminino como objeto de apreciação, cobiça e disputa. A sua juventude e beleza física encarada como seu principal “ativo”. Resultou numa sangria desatada para se ser o primeiro a chegar ao seu corpo e a explorá-lo. Não há tempo para o deixar desenvolver, e é por isso que são as meninas (pouco mais que crianças ainda “cheirando a leite”) as principais vítimas desse assédio predatório.

Ambas as vias existentes retiram às mulheres a alma, os sentimentos, direitos e necessidades específicas do seu género. Adiando com isso a união e organização das mulheres em torno de reivindicações mais do que justas e respostas institucionais aos problemas concretos que só a elas afetam.

Muitas das casas dessas mulheres, estão longe de serem ninhos de paz, amor e segurança. O domicílio pode tornar-se num espaço perigoso em que a mulher se converte numa presa fácil quando a relação amorosa sai dos trilhos. É no espaço doméstico que ocorrem as mais inefáveis atrocidades e abusos. É violada pelo companheiro, quando com ele tem relações sexuais sem o seu consentimento. E esmagada pelo mesmo quando opta por desvincular-se da relação abusiva. Acredita-se que se é dono da mulher e que se não for dessa pessoa não será de mais ninguém. Pesada, e mais descarada do que nunca, encontra-se a mão impune do patriarcado sangrando mulheres num silêncio sepulcral.

No mercado de trabalho, a grande maioria das mulheres cabo-verdianas encontra-se no setor informal, com toda a precariedade e ausência de proteção na doença e velhice que isso implica. E é por assim ser, que o sexo da pobreza cabo-verdiana é feminino. O mesmo sexo que sofre assédio moral, e principalmente sexual, no local de trabalho. Muitas, desprotegidas pelas instituições, amarguradas, cedem para manter o seu posto de trabalho e levar comida para casa. Porque assim ordena a desigual distribuição de poderes e a impunidade. É a lei do mais forte!

Acresce que o ambiente das nossas urbes é pouco amigo das mulheres. As cidades revelam-se falocêntricas. Mal iluminadas, labirínticas e com becos esconsos amedrontam as mulheres que por elas circulam. Dita a prudência que, a partir de determinadas horas da noite, devem andar acompanhadas ou de transporte. Sua liberdade à mobilidade é drasticamente condicionada por cidades ameaçadoras. Hostis à segurança feminina.

A “pauta feminina” precisa de ser assumida e colocada em cima da mesa dos principais centros decisores. As mulheres reais de carne e osso precisam de políticas, leis, programas e serviços direcionados para as suas necessidades. Enquanto isso, em silêncio e solidão, sangram.

O Estado de Cabo Verde precisa tirar a venda dos olhos e assumir as suas responsabilidades para com as mulheres caboverdianas. Só não a tirou até agora porque a situação, para alguns, tem sido deliciosa. E acredita que se vai tolerar a sua hipocrisia eternamente.

Prefere ser pouco sério e dar música. E colocar flores vermelhas atrás das orelhas das mulheres. À espera que o vermelho do seu sangue derramado se confunda no da flor, e com isso, passe despercebida a perda da sua vida. O seu sofrimento. Exploração e dor.

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Mulheres

Autoria:Antónia Môsso,8 mar 2024 7:57

Editado porAndre Amaral  em  8 mar 2024 7:57

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