Tomates: do produtor ao consumidor, passando pelo varejista

PorAntónio Ludgero Correia,1 abr 2024 7:57

“Eu não pago salários. O produto sim.” Henry Ford

Contava-me, há dias, um membro da cooperativa produtora de tomates do interior da ilha o seu drama na relação com os intermediários na distribuição da produção da cooperativa.

A superprodução de tomates ocorrida no princípio do ano, um pouco por toda a ilha, fez acender um sinal de alerta no corpo diretivo da cooperativa. É que, há coisa de três anos, acontecera algo semelhante e contabilizaram prejuízos avultados por conta da pressão das rabidantes em continuar a pagar os tomates, durante todo o ano, pelos preços praticados de Janeiro a Março.

Fizeram orelhas moucas às justificações do produtor acerca da alteração dos custos de produção: a construção da estufa, a mobilização da água a preços mais elevados, a mão-de-obra mais reivindicativa, alteração da cotação das sementes de qualidade nos mercados fornecedores, enfim, uma panóplia de situações que exigiam a elevação dos preços no produtor.

E o pior era que os preços de venda ao público tinham explodido: dos 50 CVE o quilo, de Janeiro a Março, houve momentos em que os tomates chegaram a ser vendidos a 400 CVE o quilograma.

Para completar o cenário surrealista, a cooperativa sabia que as mesmas rabidantes compravam tomates de outros produtores a preços muito superiores aos 50 CVE/kg que teimavam em querer pagar pelos tomates da cooperativa.

Chegou um momento em que a situação se tornou insustentável. Os cooperadores quiseram responsabilizar a direção da cooperativa de gestão danosa, em função da renúncia de receitas devida à não atualização dos preços do produto, mau grado os aumentos verificados nos custos dos insumos e em uma situação em que as ofertas do produto no mercado eram, de longe, inferiores à procura. Não arredavam pé da pretensão de destituir a direção da cooperativa.

Contou-me o meu amigo cooperador que foram forçados a convocar uma assembleia geral extraordinária para debater a questão e, eventualmente, eleger nova direção.

A direção, chamada à pedra, explicou que as varejistas que negociavam com a cooperativa eram clientes de longa data, desde os primórdios da associação, e que eram praticamente monopolistas na distribuição do produto no mercado da capital e que alegavam que se Nova Iorque, Frankfurt, Londres e comandita fixavam a cotação de bens produzidos nos trópicos, a milhares e milhares de quilómetros de distância, elas - as compradoras exclusivas dos tomates – podiam ou deviam poder fazer o mesmo; e os dirigentes da cooperativa alegaram, em sua defesa, que cederam porque se fora sempre assim (as rabidantes a ditar os preços) entendiam que assim deveria continuar, em nome da estabilidade.

O meu amigo cooperador contou-me que exasperado, pediu a palavra e disse poucas e boas à direção. Começou por dizer que o mercado, desde tempos imemoriais, era o ponto de encontro entre a procura e a oferta; que os custos de produção terão que ser considerados no cálculo do preço de venda aos varejistas, já que estes fixam o preço da venda ao público em função dos custos de aquisição, despesas de transporte, custo do dinheiro, lucros esperados, etc.; que se era para deixar tudo como está para ver como fica, dispensava-se um corpo de gestores bem remunerados.

Disse-me que o filho dele, um jovem e moderno agricultor, deitou a pá de cal na campa da direção, afirmando que não aceitava o princípio da submissão aos varejistas, oferecendo-se para, no limite, capitanear uma equipa para a venda direta do produto no mercado, eliminando as intermediárias do circuito.

As posições extremaram-se e o corpo diretivo, dizendo-se ofendido, pôs o cargo à disposição e declarou-se indisponível para continuar à frente da cooperativa, por um dia que fosse.

Diante do meu silêncio, enquanto o escutava atentamente, o meu compadre desafiou-me a dizer de minha justiça ou que, ao menos, comentasse a posição dele e do cooperador seu filho e, devo confessar, meu afilhado, ao que lhe respondi pedindo que, antes, gostaria de saber quais as conclusões e recomendações da assembleia geral e quem integrava, agora, a direção da cooperativa.

Com um sorriso de orelha a orelha, orgulhoso quanto baste, me informou que o meu afilhado era agora o presidente da direção da cooperativa e que, escorado nas deliberações da assembleia geral, fortemente influenciadas por ele, pretendia dar o peito à luta, fazendo por merecer a confiança nele depositada pelos cooperadores. E confessou-me que estava preocupado com a segurança do ‘menino’ já que estaria entrando em choque com algumas vacas sagradas do sistema de distribuição de hortícolas e leguminosas na ilha.

A verdade é que o meu afilhado não é ‘menino’ nenhum. Agiu como gente grande. Chamou os habituais compradores e comunicou-lhes que começava uma nova era na relação da cooperativa com os distribuidores do seu produto; que, infelizmente, para proteger o trabalho e os investimentos dos cooperadores mister se tornava fechar a torneira da renúncia de recursos, praticando um valor baseado na relação entre um comprador e um vendedor independentes, em mercado concorrencial, i.e., preços que refletem os custos dos fatores de produção sem deixar de considerar a devida margem dos varejistas na colocação dos tomates no consumidor final; que se é verdade que hoje, como ontem, o mercado continua a ser o ponto de encontro entre a oferta e a procura, não será menos verdadeiro que na nova relação que se estabelece a cooperativa não perderá de vista a necessidade de, por vezes, sacrificar seus réditos em favor de preços suportáveis pelo consumidor final. Comunicou ainda aos ‘fregueses’ de sempre que, apesar dos pesares, a direção a que preside não pensava ditar preços, nem privilegiar fregueses, estando antes disponível para negociar, em mercado concorrencial, com todos em bases da máxima transparência: estabelecido o preço mínimo para o produto (os nossos benditos TOMATES) leva mais quem mais pagar.

E, surpresa das surpresas, o porta-voz dos varejistas usou da palavra para, com um discurso económico em palavreado, sintetizar o ponto de vista da classe: É JUSTO, É MUITO JUSTO, É JUSTÍSSIMO.

Fechando o assunto com o meu compadre cooperador, que queria, a todo o custo, ouvir de minha justiça, deixei-o com estas enigmáticas (para ele) palavras: - Sorte do meu afilhado, e dos cooperadores em geral, que trabalham com tomates e não com dinheiro; que trabalham com rabidantes e não com bancos; que não podem ser classificados como fornecedores sistémicos; que não recai sobre eles o ónus de proteger, de eventual colapso, o mercado de leguminosas. Mas, sem dúvida, que o meu afilhado andou bem, caro compadre. Fez o que tinha de ser feito para evitar o colapso… dos trabalhadores (organizados em cooperativa). Bem-haja!

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1165 de 27 de Março de 2024. 

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Autoria:António Ludgero Correia,1 abr 2024 7:57

Editado porAndre Amaral  em  1 abr 2024 7:57

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