Este silêncio é revelador de que não se está, nem se vai ficar, “em paz com a história” enquanto houver um esquecimento activo sobre as atrocidades cometidas durante o regime de Partido Único.
Enquanto a estratégia para a desejada unidade nacional for a de deixar aspectos importantes de lado, apenas porque são vistos como divisivos ou prejudiciais, não conseguiremos avançar em direcção a um novo futuro. Este tipo de “esquecimento” implica a negação ou ocultação de eventos importantes e deixa de fora da nossa história o registo dos acontecimentos relativos a uma parte do seu povo. Onde fica a unidade?
Acresce que, através de estratégias várias, tem havido tentativas de colocar mordaças nas vozes dissonantes do discurso oficial. Como exemplo, aqui se transcreve uma das mensagens recebidas na sequência do meu último DizCorrendo, “O 25 de Abril que nunca aconteceu”.
“Neste momento, em que o mundo vive entre duas grandes guerras e outras de não menos importância, mas, infelizmente, ignoradas aparentemente, Cabo Verde, os cabo-verdianos, sobretudo os mais jovens, não precisam de mensagens divisionistas, mas sim de mensagens apelando à paz e à coesão social capazes de restabelecer um clima de confiança na construção de um futuro melhor para todos.”
Ocorre-me dizer que se a democracia não servisse para cada um pensar pela sua cabeça e sem medo desses pensamentos, para quê precisávamos de democracia? Por outro lado, não pode haver um pensamento paternalista sobre os jovens que, coitados, devem ser tão sensíveis que não podem saber da verdade… Adiante!
Silêncio ou Mordaças
… … …
Mordaças!
A um poeta?
Não me façam rir!...
Experimentem primeiro
Deixar de respirar
Ou rimar... mordaças
Com Liberdade.
– Ovídio Martins, “O único impossível”, Poema dedicado a Baltasar Lopes, in Caminhada, 1962
Cabe aqui referir que Doutor Baltasar Lopes da Silva viria a estar na mira do PAIGC tendo sido sujeito a interrogatório em 1977 e aventada a hipótese da sua prisão.
Os “terroristas mindelenses”
A 28 de Maio de 1977 várias pessoas bem conhecidas no meio mindelense e em Santo Antão – Abrão Manuel Fortes, Adelino Leite, Adriano Santos, Agnelo Augusto Alves (Ti Nené), António A. Lopes (Toi d’Forro), António Duarte Almeida (Toi Pedro Cláudio), Augusto Macedo de Melo, Celestino Pires (Titino Boxer), Godinho (Português), João Crisóstomo Monteiro, João da Cruz Lima, João de Deus da Luz (Nha Xá), José (Zeca) da Silva Matos, Lela Morais, Luís Marques da Silva (Lulu Marques), Manuel Chantre (Lela de Drogaria), Mário Leite, Osvaldo Rocha – foram detidas e presas no antigo quartel de João Ribeiro, Cadeia da Ribeirinha e Comando Militar num acto intimidatório com a justificação de prevenção de “actos terroristas” planeadas para São Vicente e Santo Antão.
Após meses de prisão, Toi d’Forro faleceu e Titino Boxer, alvejado a tiro numa tentativa de fuga, veio a morrer pouco tempo depois da sua libertação. Todos eles foram libertados ao fim de cinco meses, sem julgamento.
O panfleto do crime
“Homens do PAIGC regressem para o mato onde a barba é simples resguardo da pele do rosto e não o símbolo da divindade humana. O povo já não vos quer, o povo já não vos tolera mais, pois vós sois sementes de ervas daninhas a germinarem nas terras dos filhos de Deus”.
“Perante a ameaça de mais sevícias, Manuel Chantre (Lela de Drogaria), confessa que tinha sido ele a estampar os panfletos e que não havia organização alguma. Isso não satisfaz as autoridades. Os interrogatórios continuam, sempre sem a presença de advogados de defesa ou de escrivães para anotarem as palavras dos presos, mas a máquina de choques eléctricos nunca faltava” – Jorge Montezinho, in Expresso das Ilhas n.º 809 de 31 de Maio de 2017.
A paranoia do complô
O PAIGC vivia momentos de paranoia e de complô e, por isso, de grande tensão e nervosismo. Convém explicar que a paranoia do complô é um termo que descreve a tendência de algumas pessoas ou grupos de acreditarem em teorias de conspiração, muitas vezes sem evidências concretas, onde enxergam intenções ocultas e malignas em eventos ou acções de outros.
Angola: MPLA – a 27 de Maio houve um levantamento popular em Luanda com uma tentativa de golpe de Estado liderado por Nito Alves, de que resultaram, na sequência, um total de trinta mil mortos. Esse acontecimento terá feito soar os alarmes junto dos dirigentes do PAIGC;
Guiné-Bissau: PAIGC – Em Bissau “filhos renegados da nossa terra têm urdido campanhas contra os nossos países através de panfletos subversivos. […]. Na cidade de Bissau foram detectados panfletos lançados por ex-informadores da PIDE ligados a traidores no estrangeiro” – Constantino Teixeira, Comissário de Estado de Segurança da Guiné-Bissau (Voz di Povo, 11,06.77).
Pretexto para, em Cabo Verde, se aterrorizar toda uma camada social que o PAIGC via, por razões ideológicas, com desconfiança.
Ironicamente, são esses três países – Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde – que nunca se retractaram ou pediram desculpas pelas atrocidades cometidas em 1977, que estiveram no 1.º de Maio a comemorar o encerramento do Campo de Trabalho do Tarrafal criado pelo Estado Novo.
Castigos sem crime
A Direcção Nacional de Segurança e Ordem Pública justificando as prisões emitiu uma nota de imprensa nos seguintes termos (Voz di Povo, 11.06.77):
“Depois de confirmar a existência nas áreas de São Vicente e Porto Novo de contra-revolucionários, incluindo antigos informadores da PIDE-DGS, que mantêm estreitas relações com elementos anti-nacionais radicados no estrangeiro, a Direcção Nacional de Segurança e Ordem Pública, ordenou ao Agrupamento daquela área a proceder ao desmantelamento do referido grupo. Das primeiras averiguações apurou-se que:
1. Efectivamente todas as pessoas até ao momento detidas estão ligadas àquele grupo;
2. O objectivo principal a que se propunham era a criação de um clima de insegurança interna e desprestígio do Governo no plano externo a fim de criar as condições propícias a uma intervenção do exterior, que tentaria destruir o actual regime político e travar o processo de transformação social em curso;
3. Para levarem a cabo seu intento, tencionavam:
– Mobilizar a população através de panfletos de conteúdo calunioso e demagógico, que já tinham começado a espalhar nas áreas atrás mencionadas, e particularmente, nas frentes de trabalho em S. Vicente;
– Instaurar um clima de instabilidade, para o que já tinham plano e material para a sabotagem de alguns pontos sensíveis, tais como a JAIDA, a Central Eléctrica, as Instalações de Telecomunicações, os quartéis, a Rádio Voz de S. Vicente, vias de comunicação em S. Antão, ao mesmo tempo que procederiam à liquidação física de alguns responsáveis do Partido e do Governo.
Neste momento prosseguem as averiguações com vista ao apuramento das responsabilidades. Mais se informa que, um dos detidos, furtando-se à vigilância dos guardas, evadiu-se e, ao ser localizado, saltou do terraço onde se encontrava tendo ficado gravemente ferido.”
O Primeiro-ministro, Pedro Pires, “convenientemente” em visita oficial à ilha de São Vicente, aquando das prisões, referindo-se às pretensas acções dos “terroristas mindelenses” diz (Voz di Povo, 11.06.77):
”Não chego mesmo a perceber o que é que eles queriam, como é que eles pretendiam agir, mesmo que contassem com uma intervenção do exterior. […]. Noutro aspecto penso que é preciso que se note que nós não queremos nem estamos a trabalhar para instaurar um regime burguês nem uma justiça burguesa. Vão ser tomadas todas as medidas para que os culpados sejam exemplarmente castigados; com certeza terão direito a defesa, com certeza, como cidadãos terão direito a se defenderem, a se explicarem, etc. Mas ainda não se pode dizer que eles estejam presos, não se trata ainda de uma prisão. Eles estão detidos para averiguações...”.
Os depoimentos recolhidos por Onésimo Silveira e publicados no livro A Tortura em Nome do Partido Único (1991), mostram como esses homens foram “exemplarmente castigados” por crimes que não cometeram.
“Vou-me embora”, BL
Na sequência dessas prisões sumárias, em carta datada de 31 de Maio de 1977 e dirigida a Manuel Monteiro Duarte e António Caldeira Marques, respectivamente, Juiz-Presidente e Juiz-Conselheiro do Conselho Nacional da Justiça [actual Supremo Tribunal de Justiça], Baltasar Lopes da Silva [então Juiz do Conselho Nacional de Justiça] confessa em jeito de desabafo e impotência (Caldeira Marques, 1999):
“Tenho da justiça um conceito suficientemente alto para me ser impossível pactuar com o que se está passando em S. Vicente e que nada nos garante que não continuará.
[…]
As minhas medidas já ficaram insuportavelmente cheias. Vou-me embora. Já dispus o espírito neste sentido e, já agora, é uma simples questão de liquidar o pouco que cá possuo (se as justiças da terra a permitirem, o que, na hipótese negativa, será mais uma lição que assimilarei, desta vez, muito bem) e ir para onde o ouvir de Cabo Verde seja tão pouco provável que eu não tenha margem para pensar em quanto e como quis isto.
Dramático que isto me aconteça a mim, mas que querem?”.
DizCorrendo sobre as prisões e torturas em São Vicente em Maio de 77, o silêncio ensurdecedor que tem existido sobre o assunto, as tentativas de se colocar mordaças nas vozes dissonantes e o querer ficar “em paz com a história”.
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CALDEIRA MARQUES, António, Cabo Verde: os bazófios da independência (com uma carta inédita de Baltasar Lopes da Silva). Lisboa: Edição do Autor, 1999.
CARDOSO, Humberto, O Partido Único em Cabo Verde – Um Assalto à Esperança. Praia: Edição do Autor, 1993.
MONTEZINHO, Jorge, “40 anos de silêncio sobre as prisões e as torturas em São Vicente”, in Expresso das Ilhas, n.º 809 de 31 de Maio. Praia: 2017.
SILVEIRA, Onésimo, A Tortura em Nome do Partido Único. Mindelo: Edições Terra Nova e Ponto & Vírgula, 1992.
VOZ DI POVO, Maio e Junho de 1977. Praia: 1977.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1173 de 22 de Maio de 2024.