…Ecoa-me a palavra “segredo”. Os que se deixam nos lugares por onde passamos, mas que podem ser contados… sim, a música permite.
A imagem que fui tendo de Bertânia foi a de: mulher-voz que foi chegando, de forma sensitiva, onde seria preciso mais do que ouvi-la: seria preciso senti-la.
De voz-timbre quase única, quando canta tem a capacidade de não deixar que uma única nota saia sem ter sido acarinhada e envolvida em sentimento. Só assim a mesma saberá chegar a quem a sente, pois leva a quase-missão de encanto… sim, em canto para o encanto de quem ouve Bertânia. As notas têm de seguir as “instruções do coração”, pois ao se juntarem à musicalidade que criam, vinda também da voz da intensa-doce da cantora, embalam-nos quase que num tipo de hipnose, que nos arrebata e que dela não nos “livramos” …nem queremos nos livra…só nos lembramos que estamos mergulhados-em-voz-Bertânia quando nos movemos por ínfimo segundo, ao ouvir pequenas e doces “curvas”, típicas do cantar da artista e que são bordadas nos prolongamentos da voz quando “atirados” em linha reta, e que, de repente, faz um tipo de vibrato que nos “acorda”...
... Voltando à palavra “segredo”, dizia eu acima, que Bertânia foi chegando a nós em cores neutras. Há poucos anos, lança o disco “Descobri” – para mim já em prateleira garantida e com o selo de “discografia obrigatória da música de Cabo Verde”. Enorme costume escrever sobre discos, mas este será difícil, pois é para ser sentido e não ouvido.
Sei que tem Florzinhas e brisas em serenata...tem partidas, regressos e é também feito …de tristezas que são alegrias e alegrias que são tristezas. Há nele segredos, mas também tem recados, muitas vezes tendo o Mar como confidente… o mar a que se contam segredos, lamentos … por ser “nos confidenti”, que nos ouve sempre e tudo leva em ondas que vão e que de novo traz sempre - o conforto - em ondas que quebram…
Num monte escondido há “terra-longe” que se vê das ilhas, e que um dia somos desafiados a partir…, mas há também saudade… mas - há “Portas Abertas” que esperam nova entrada…
As tais ilhas, são cobertas por um céu de onde pode cair uma estrela e que chega até nós a pairar na brisa da serenata acima referida, ou não fosse a Morna, a rainha deste disco.
Há sorrisos, choros, e “odjos di uva maduro”, “odjos di água” que transmitem felicidade (…e que cá entre nós… são tão inocentemente visíveis “ki mundu interu ta xinti”...).
Há ainda hojes que são hojes, pois a felicidade é agora…mas, acima de tudo, o disco é feito de Amor - que começa nos sonhos que deixam dormir sonos de amor indo até um enorme “amor profundo” que um dia um compositor de uma ilha pequenina teve a mestria de sentir- escrever para muitos sentires. Há amores iguais aos do “mar pa areia”...
Tudo é intimamente belo, belo em calmaria.
Mas ainda será preciso falar de um mestre que mora no disco. O dos solos de violão de um mestre que sempre foi mestre - mas talvez muitas vezes “não lembrado” por alguns. Porém as ilhas sabem que o têm sempre quando necessário – absolutamente Bau.
… Melodias intensamente íntimas pintam o disco. Inclusive momentos que são traduzidos por um delicado assobio (não será este o instrumento mais intimo que temos? Creio que sim). Há também no disco um repertório onde cada compositor é cor.
Nos últimos meses Bertânia fez três palcos-momento e projecta um quarto que, de forma definitiva, fizeram desabrochar a cantora, a artista e a mulher contida (ainda…) na artista.
Aquando do espetáculo de apresentação de Piano Solo do pianista Carlos Matos no Centro Cultural do Mindelo, Bertânia interpreta “Resposta di Segredo Cu Mar” num “Voz e Piano” onde o tempo parou. Sentiu-se o respirar de Bertânia, o barulho e emoção dos dedos de Matos no piano, e uma preciosa gestão de silêncios. Como é lindo quando a cantora sabe gerir silêncios sem deles recear. O silencia também é musica.
Mais tarde, Betânia faz parte do projecto “Divas do Mindelo” – um dos momentos altos do Festival da Baía das Gatas deste ano. A euforia desmesurada pelas estrelas internacionais, talvez tenha ofuscado a beleza do que está bem perto de nós…e que é nosso.
Na mesma semana, repete o dueto com Matos, no mesmo palco … pois este ainda tinha o suave cheiro da voz de Bertânia. Desta vez interpretou o tema “Amor Profundo” de Tibau Tavares e... com esta tríade intensa e preciosa: instrumentista-voz e compositor – fez mais minutos de magia. Tudo foi voz e música, num cénico raro, de intimismo marcante. A plateia de novo parou e só reagiu quando “acordou” para pedir mais…
Em paragem seguinte, Bertânia prepara-se para estar na Praia, no dia 13 no “Pela Paz” concerto que acontecerá no Tarrafal e que tem por mentor Mário Lúcio. Se unirmos estes momentos, haverá certamente razões para dizer a Bertânia que recebemos os segredos e que nos próximos palcos-momento, nós lá estaremos para senti-la …
Certamente novas histórias e momentos chegarão de Bertânia, e quanto a nós… é só deixarmo-nos levar em doce estado de alma, e abertos a mensagens sobretudo de amor, em intimismo musical para sentir: a ouvir e ver. Como disse Bertânia … “Este álbum é uma partilha de emoções com todos os que à música estão abertos, neste ímpeto pelo descobrir...”
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1189 de 11 de Setembro de 2024.