Metaverso e o VOC da língua portuguesa

PorJoão Neves,23 dez 2024 7:44

João Neves - Director Executivo do IILP
João Neves - Director Executivo do IILP

Metaverso: “o espaço ou ambiente de realidade virtual, no qual pode haver interação entre utilizadores”, ou seja, um universo virtual compartilhado criado pela convergência da realidade física e virtual, através da realidade virtual (VR) e aumentada (AR).

Como sucede para tantos outros, este neologismo foi validado para língua portuguesa (LP), e assim passível de dicionarização, por via da declaração da sua inserção no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) pela Academia Brasileira de Letras (ABL), que tem, neste momento, em processo de apreciação palavras como tokenização ou terrir (junção de terror e rir). Do mesmo modo, a Academia de Ciências de Lisboa (ACL) verteu recentemente para o seu VOLP termos como vlogue (blogue em formato de vídeo) ou dataísmo (corrente de valorização da importância dos dados na organização do mundo), tendo igualmente outros em processo de análise.

Pese embora a criação de neologismos constituir fenómeno corrente e acelerado em todos os contextos de circulação da língua portuguesa, pela globalização do conhecimento, pelo desenvolvimento tecnológico, pela circulação de pessoas e por dinâmicas linguísticas contextuais, as decisões formais e públicas em matéria de oficialização lexicográfica de termos em LP têm tido em cada uma das duas academias acima os seus principais (e quase únicos) protagonistas. Porque lhes compete fazê-lo para os seus países, claro, e também por fragilidades em outros países ao nível dos estudos lexicográficos e à inexistência de uma estrutura nacional que tenha por propósito e missão atualizar o respetivo vocabulário ortográfico nacional (VON), para os países que dele disponham, declarando também eles, de modo formal e público, a inserção de neologismos ou empréstimos no seu VON e na LP, o que constitui um direito seu.

De modo simplificado, estas foram algumas das questões que conduziram à organização pelo IILP da I Reunião do Grupo Multilateral de Reflexão sobre a LP (GMR-LP / IILP), que reuniu na Praia, nos dias 5 e 6 p.p., representantes de instituições e serviços que, nos seus países, prestam assessoria aos respetivos Governos em matéria de política e de planeamento linguístico ou são responsáveis pela execução das políticas públicas no domínio da LP.

Ao longo de dois dias, dirigentes da Academia Brasileira de Letras, da Academia de Ciências de Lisboa, dos Ministérios de Educação de Angola, Cabo Verde e Timor-Leste, dos Serviços de Educação e Desenvolvimento da Juventude de Macau (na primeira colaboração de sempre com o IILP) e representantes de Comissões Nacionais do IILP da Guiné-Bissau e de Angola refletiram sobre procedimentos para uma articulação multilateral e uma gestão mais comum em matérias como critérios para a inclusão de neologismos e de empréstimos linguísticos (os designados estrangeirismos) em recursos lexicográficos em língua portuguesa; sobre a criação de listas e a fixação de grafias para topónimos e gentílicos; sobre o Acordo Ortográfico de 90 e as situações em que a aplicação das suas bases tem suscitado questões.

Uma reunião assim tão importante quanto a sua agenda. Acima de tudo, inovadora, pois que a composição para ela definida, os temas inscritos para discussão e os propósitos definidos representam um avanço no papel que cabe ao IILP cumprir e na cooperação entre as diversas instâncias nacionais presentes.

A desejável alteração do panorama atual, que apresenta grande disparidade na capacidade de produção nacional, ao nível de cada Membro, de recursos lexicográficos para a LP, passará, necessariamente, por três dimensões no centro das reflexões efetuadas e da documentação circulada: a partilha de metodologias e de instrumentos de validação e de regulação para as situações analisadas (neologismos, empréstimos, topónimos e gentílicos), procurando a harmonização possível; a criação (onde não existam) de serviços/grupos de trabalho que procedam, a nível nacional, ao desenvolvimento e/ou à atualização permanente das listas vocabulares naquelas áreas e do VON; a articulação entre os Membros no que respeita às decisões nacionais em matéria de inclusão de novos termos nos respetivos vocabulários e, por essa via, no Vocabulário Ortográfico Comum (VOC) da língua portuguesa.

A criação de um plano de formação em lexicografia a desenvolver em 2025 para técnicos nacionais a par de uma formação mais específica sobre “Como fazer um dicionário” surgiram, assim, como algumas das (boas) decisões, a par da entrega, pela ACL, das listas de topónimos e gentílicos dos diferentes VON a cada Membro e da criação, a partir de 2025, de um mecanismo de partilha prévia pelos restantes Membros da decisão de incorporação de novos termos nos VOLP por qualquer das instâncias presentes.

Merece ainda nota a análise efetuada à aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) nos contextos em que o mesmo se encontra em vigor, com especial atenção para a necessidade de simplificação, de clarificação ou de superação de situações dúbias ou omissas que têm contribuído para o surgimento de divergências e de incongruências. Sobretudo, a decisão tomada de criação de um grupo técnico de análise das bases do AO90, a partir de uma avaliação cuidada de cada uma delas a ser desenvolvida por cada entidade presente, tendo em vista, com base na mesma, poder avançar-se para uma revisão e uma harmonização das referidas Bases, com a participação de todos. Esse grupo técnico reunirá para esse efeito em julho de 2025, no que poderá constituir outros dos resultados muito positivos deste encontro.

O pluricentrismo da língua portuguesa, que hoje integra a globalidade dos discursos que sobre ela se fazem, só é efetivo se, entre outras questões, se trabalharem, a nível nacional e, em paralelo, em articulação multilateral, aquelas que esta reunião abordou e as que, conforme vontade expressa dos participantes na sua continuidade, as próximas se dedicarão.

Talvez aí, e quando com os VON todos concluídos, possamos ter um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, que agregue todas as (diferentes) realizações, questão mais relevante (mas menos mediática) do que discutir se há fragmentação na língua portuguesa.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1203 de 18 de Dezembro de 2024.

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Autoria:João Neves,23 dez 2024 7:44

Editado porSara Almeida  em  23 dez 2024 19:44

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