Nessa azáfama, potencializada pela cultura da busca da validação nas redes sociais, só o solteiro(a) não comprometido(a) e os elementos do nosso sistema político podem**-se** dar ao luxo de esquecer ou de desdenhar este dia. Os primeiros podem considerar-se fora de uma animação que, por motivos dolorosos ou prazerosos, decidiram excluir-se. Os segundos podem alegar que o amor comporta uma aura de subjetivação que impede a sua objetivação e, com este expediente discursivo, perpetuam o desdém pelo papel das emoções no desenvolvimento nacional e, particularmente, o impacto das transferências financeiras, motivadas pelo amor, na redistribuição da renda nacional.
Porém, se considerarmos que, quando o amor não corre bem, os seus efeitos, aos níveis pessoal e coletivo, têm sido objetivos, e a violência na intimidade é a prova material disso, de forma pública ou privada, o dia 14 de fevereiro é um convite a pensarmos como é possível o amor entre os cabo-verdianos e a retirá-lo da sua aura de subjetivação.
Imbuído dessa intenção, num artigo publicado na obra coletiva “EM PORTUGUÊS: Falar, Viver, Pensar o Século XXI” pela Universidade Católica Editora, busquei a enunciação literária das condições sociais de possibilidade do amor nas obras literárias “O Escravo”, de Evaristo de Almeida, “Contra Mar e Vento”, de Teixeira de Sousa, e “Eva”, de Germano Almeida.
Pude apurar que estas obras conferem visibilidade às condições em que os sentimentos amorosos se efetivaram como interpenetrações subjetivas, matizadas pelos propósitos de classe, de raça e de individualidade, mas também às condições em que foram deslocados para além da linha limite da sua possibilidade: como sacrilégio no contexto escravocrata, como insolência no contexto tardo-colonial e como incerteza na nossa democrática contemporaneidade.
“O Escravo”, de Evaristo de Almeida, mostra o amor em ambos os lados da linha limite de concretização determinada pela sociedade escravocrata. Ganha plausibilidade quando se dá entre indivíduos da mesma condição social. Como exemplos, temos a afeição de Luíza por João (ambos escravos, ela confidente dele e testemunha de toda a trama), que, embora plausível, não se concretizou, dado que João não lhe nutria uma recíproca afeição, e a relação íntima de Júlia e Luís, ambos escravos, vivenciada como relação concretizada, até se tornar conhecida pelo dono deles e necessitar da aprovação deste.
Entretanto, quando é o caso da afeição de João, o escravo, pela filha do seu dono, Maria, o amor perde plausibilidade e legitimidade. Torna-se um sacrilégio, atentando profundamente contra a estrutura da ordem social escravocrata. Em João, a questão da interpenetração da raça com a classe evidencia-se na sua condição social de escravo, cujos sentimentos pela sua senhora, que é mulata, não podem ser concebidos dentro da ordem estabelecida, tanto que, ciente disso, ele aceita docilmente a sua pena, que é a morte.
Por sua vez, no conto «O Encontro», do livro “Contra Mar e Vento”, de Teixeira de Sousa, temos o retrato literário de uma relação amorosa inserida num contexto social pós-escravocrata, na qual se reclama, de forma agonizante, mas firme, o amor como um atributo de iguais. Num contexto social em transformação, os capitais sociais, como a ascendência racial e classista, assistem à ascensão social do capital cultural, acentuado na formação académica, situação que potencia novas práticas sociais.
Se aqui a questão da raça/classe não ganha visibilidade explícita, ela subjaz sob os marcadores que, na tradição foguense, asseguraram o lugar diferenciado a cada estrato social e certificam as distâncias sociais: o sobrado e a festa. Por isso, Miguel, o amante apaixonado, simboliza a vanguarda de uma ordem social que se insinua à medida que assiste ao definhamento da precedente. O seu idílio representa a mitigação das distâncias culturais, traduzida, por exemplo, no gosto comum por Chopin, nos diálogos sobre Eça de Queirós, sem exigir nivelamento socioeconómico.
Roberto, primo da Ilda, com a sua emblemática afirmação «Fora a lei de feijão-mistura!», figura a desesperada reação social. As pretensões amorosas de Miguel, um aspirante da alfândega, com uma legítima descendente das gentes do sobrado, eram uma insolência afrontosa à qual os guardiões da honra da raça/classe foram chamados a responder.
Por sua vez, se Evaristo de Almeida e Teixeira de Sousa enunciam o amor como um atributo social somente possível entre indivíduos de igual condição social, Germano Almeida, em “Eva”, enuncia o amor como atributo social em que as diferenças sociais funcionam como estímulos. São diversos os seus romances que tomam como fundo o processo de modernização política do arquipélago, sem descurar os processos de subjetivação inerentes. “Eva” é a objetivação literária do amor focado nas particularidades individualizantes e já estruturada pela biopolítica priorizada a partir de 5 de Julho de 1975.
Germano Almeida mostra-nos que o amor, liberto do casamento e das amarras do dispositivo de aliança, dá centralidade às necessidades subjetivas do sujeito amoroso, permitindo-lhe buscar satisfação da carência amorosa sempre que esta se apresente, mas também fica evidente que esta modelação social das relações amorosas obriga-o a viver num circuito de sucessivos recomeços, uma vez que o desgaste amoroso, produto da própria relação, gera oportunidades de envolvimento por outras possibilidades de relações amorosas.
“Eva” é um exemplo da afirmação do amor como meio de comunicação simbolicamente generalizado, que permite centralizar, nas comunicações, tudo a respeito da individualidade. Mas, à medida que o encontro, a descoberta e o cuidado de si trazem a cada indivíduo facetas suas que não consegue comunicar, torna-se improvável e incerto que o amado se possa dar a conhecer ao amante de forma absoluta, dado que, no mínimo, somos seres que nunca se revelam absolutamente. Logo, perante o imperativo de se conhecer o amado, como condição fundamental para se poder amá-lo, a incerteza surge como a linha limite de possibilidade de concretização do amor.
Em suma, partindo da literatura, aprendemos que o amor entre os cabo-verdianos, mais do que um sentimento individual, é um código social que tem potencializado a comunicação da individualidade, segundo a estrutura e os interesses de cada período histórico e está atrelado à regulação sociopolítica das dinâmicas familiares e de género. Daí que compreender e aceitar a sua variabilidade, como sacrilégio, insolência e, hoje, incerteza, nestes nossos dias marcados por reformulações das estruturas familiares e pelos antagonismos baseados no género, pode salvar vidas!
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1211 de 12 de Fevereiro de 2025.