Incerto «Amor»

PorAdilson Semedo,14 fev 2025 10:53

Há algumas décadas que, nos caminhos por onde passam as relações íntimas, desde os juvenis namoros até às maritais coabitações, o dia 14 de fevereiro, dedicado ao amor e à amizade, se impõe como uma data em que os laços amorosos têm de ser exteriorizados em forma de atos públicos ou comerciais, sob pena da confirmação de que estes laços estão moribundos.

Nessa azáfama, potencializada pela cultura da busca da validação nas redes sociais, só o solteiro(a) não comprometido(a) e os elementos do nosso sistema político podem**-se** dar ao luxo de esquecer ou de desdenhar este dia. Os primeiros podem considerar-se fora de uma animação que, por motivos dolorosos ou prazerosos, decidiram excluir-se. Os segundos podem alegar que o amor comporta uma aura de subjetivação que impede a sua objetivação e, com este expediente discursivo, perpetuam o desdém pelo papel das emoções no desenvolvimento nacional e, particularmente, o impacto das transferências financeiras, motivadas pelo amor, na redistribuição da renda nacional.

Porém, se considerarmos que, quando o amor não corre bem, os seus efeitos, aos níveis pessoal e coletivo, têm sido objetivos, e a violência na intimidade é a prova material disso, de forma pública ou privada, o dia 14 de fevereiro é um convite a pensarmos como é possível o amor entre os cabo-verdianos e a retirá-lo da sua aura de subjetivação.

Imbuído dessa intenção, num artigo publicado na obra coletiva “EM PORTUGUÊS: Falar, Viver, Pensar o Século XXI” pela Universidade Católica Editora, busquei a enunciação literária das condições sociais de possibilidade do amor nas obras literárias “O Escravo”, de Evaristo de Almeida, “Contra Mar e Vento”, de Teixeira de Sousa, e “Eva”, de Germano Almeida.

Pude apurar que estas obras conferem visibilidade às condições em que os sentimentos amorosos se efetivaram como interpenetrações subjetivas, matizadas pelos propósitos de classe, de raça e de individualidade, mas também às condições em que foram deslocados para além da linha limite da sua possibilidade: como sacrilégio no contexto escravocrata, como insolência no contexto tardo-colonial e como incerteza na nossa democrática contemporaneidade.

“O Escravo”, de Evaristo de Almeida, mostra o amor em ambos os lados da linha limite de concretização determinada pela sociedade escravocrata. Ganha plausibilidade quando se dá entre indivíduos da mesma condição social. Como exemplos, temos a afeição de Luíza por João (ambos escravos, ela confidente dele e testemunha de toda a trama), que, embora plausível, não se concretizou, dado que João não lhe nutria uma recíproca afeição, e a relação íntima de Júlia e Luís, ambos escravos, vivenciada como relação concretizada, até se tornar conhecida pelo dono deles e necessitar da aprovação deste.

Entretanto, quando é o caso da afeição de João, o escravo, pela filha do seu dono, Maria, o amor perde plausibilidade e legitimidade. Torna-se um sacrilégio, atentando profundamente contra a estrutura da ordem social escravocrata. Em João, a questão da interpenetração da raça com a classe evidencia-se na sua condição social de escravo, cujos sentimentos pela sua senhora, que é mulata, não podem ser concebidos dentro da ordem estabelecida, tanto que, ciente disso, ele aceita docilmente a sua pena, que é a morte.

Por sua vez, no conto «O Encontro», do livro “Contra Mar e Vento”, de Teixeira de Sousa, temos o retrato literário de uma relação amorosa inserida num contexto social pós-escravocrata, na qual se reclama, de forma agonizante, mas firme, o amor como um atributo de iguais. Num contexto social em transformação, os capitais sociais, como a ascendência racial e classista, assistem à ascensão social do capital cultural, acentuado na formação académica, situação que potencia novas práticas sociais.

Se aqui a questão da raça/classe não ganha visibilidade explícita, ela subjaz sob os marcadores que, na tradição foguense, asseguraram o lugar diferenciado a cada estrato social e certificam as distâncias sociais: o sobrado e a festa. Por isso, Miguel, o amante apaixonado, simboliza a vanguarda de uma ordem social que se insinua à medida que assiste ao definhamento da precedente. O seu idílio representa a mitigação das distâncias culturais, traduzida, por exemplo, no gosto comum por Chopin, nos diálogos sobre Eça de Queirós, sem exigir nivelamento socioeconómico.

Roberto, primo da Ilda, com a sua emblemática afirmação «Fora a lei de feijão-mistura!», figura a desesperada reação social. As pretensões amorosas de Miguel, um aspirante da alfândega, com uma legítima descendente das gentes do sobrado, eram uma insolência afrontosa à qual os guardiões da honra da raça/classe foram chamados a responder.

Por sua vez, se Evaristo de Almeida e Teixeira de Sousa enunciam o amor como um atributo social somente possível entre indivíduos de igual condição social, Germano Almeida, em “Eva”, enuncia o amor como atributo social em que as diferenças sociais funcionam como estímulos. São diversos os seus romances que tomam como fundo o processo de modernização política do arquipélago, sem descurar os processos de subjetivação inerentes. “Eva” é a objetivação literária do amor focado nas particularidades individualizantes e já estruturada pela biopolítica priorizada a partir de 5 de Julho de 1975.

Germano Almeida mostra-nos que o amor, liberto do casamento e das amarras do dispositivo de aliança, dá centralidade às necessidades subjetivas do sujeito amoroso, permitindo-lhe buscar satisfação da carência amorosa sempre que esta se apresente, mas também fica evidente que esta modelação social das relações amorosas obriga-o a viver num circuito de sucessivos recomeços, uma vez que o desgaste amoroso, produto da própria relação, gera oportunidades de envolvimento por outras possibilidades de relações amorosas.

“Eva” é um exemplo da afirmação do amor como meio de comunicação simbolicamente generalizado, que permite centralizar, nas comunicações, tudo a respeito da individualidade. Mas, à medida que o encontro, a descoberta e o cuidado de si trazem a cada indivíduo facetas suas que não consegue comunicar, torna-se improvável e incerto que o amado se possa dar a conhecer ao amante de forma absoluta, dado que, no mínimo, somos seres que nunca se revelam absolutamente. Logo, perante o imperativo de se conhecer o amado, como condição fundamental para se poder amá-lo, a incerteza surge como a linha limite de possibilidade de concretização do amor.

Em suma, partindo da literatura, aprendemos que o amor entre os cabo-verdianos, mais do que um sentimento individual, é um código social que tem potencializado a comunicação da individualidade, segundo a estrutura e os interesses de cada período histórico e está atrelado à regulação sociopolítica das dinâmicas familiares e de género. Daí que compreender e aceitar a sua variabilidade, como sacrilégio, insolência e, hoje, incerteza, nestes nossos dias marcados por reformulações das estruturas familiares e pelos antagonismos baseados no género, pode salvar vidas! 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1211 de 12 de Fevereiro de 2025.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Adilson Semedo,14 fev 2025 10:53

Editado porAndre Amaral  em  14 fev 2025 10:53

pub
pub.

pub.
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.