Nessa altura, havia enfrentamentos geracionais, simbolicamente conectados a lideranças do passado, propostas de consolidação da continuidade mais do que de ruturas, e uma certa proeminência de aspetos de personalização em detrimento de agendas de base ideológica. Recorde-se que muitos qualificaram aquele debate como um grande momento para o PAICV. Fora, na verdade, um bom momento para o esclarecimento da opinião pública, porque a realidade e a cultura dos partidos políticos são de extrema importância para a democracia, e precisam ser percecionadas, em todos os seus contornos e derivações. A vivacidade ou fragilidade, a renovação, os pontos de rutura, e o engajamento dos partidos políticos com as causas e o futuro da naçãointerpelam a todos os cidadãos, para além dos seus militantes, ou pelo menos deveria assim ser. Essa ativação constante ou ritualística da relevância das instituições partidárias, enquanto entidades públicas, não é uma responsabilidade exclusiva dos partidos, cabendo à intermediação jornalística também cumprir um papel relevante, mormente nestes tempos de renovação de formas da representação política.
As atuais disputas internas no seio do PAICV encerram em si demasiados apports de interesses jornalísticosque merecem e devem ainda ser explorados com superior interesse por parte dos órgãos de comunicação social, muito mais daquilo que temos vindo a assistir. Estas disputas, ainda que internas de um partido, são simbólicas e estruturais, porque os seus resultados começarão a desenhar o cenário das próximas eleições legislativas no país e o tom do futuro da nação, numa conjuntura geopolítica de grandes incertezas.Para além desse pilar de extrema relevância, vive-se na presente conjuntura uma extrema reconfiguração da representação política no espaço cibernético, com impacto na participação dos cidadãos, muito ativismo dos influencers, muita comunicação política direta, o que também cria uma necessidade do reforço do formalismo e intervenção jornalística na colocação e fundamentação das propostas. Urge um intenso esclarecimento da opinião pública, para balancear o debate e enfrentar o peso dos subjetivismos que tendem a ser dominantes nessas interações, e contaminam, com custos incalculáveis, a escolha ou a perceção geral dos cidadãos, e tudo o que desse universo desconhecido se advém.
Confluem, portanto,demasiados elementos novos na comunicação política e no espaço cibernético cabo-verdiano, dominadospelas novas tendências da política contemporânea, já mencionadas neste artigo, onde a proximidade entre os atores políticos e os cidadãos tende a estreitar-se, atravessada poruma interação digital plana com forte participação dos novospúblicos, ávidos pela participação política. Desses novos públicos sobressai uma grande parcela de “outsiders” que se agarram com força às narrativas de rutura com o formalismo e o tradicionalismo políticos. Mais do que apelidar essas irrupções políticas de populismo, é conveniente fazer um esforço de traduzi-las, provocar e engendrar uma compreensão coletiva e pedagógica desses fenómenos, à luz das porosidades da nossa sociedade e dos perfis de cidadãos que temos. O debate, a urgência das perguntas, e a imparcialidade e consistência na intermediação jornalística, principalmente audiovisual, dariam e ainda poderão dar um grande contributo nesta fase crítica.
Na presente assembleia eleitoral interna do PAICV, ora suspensa pelo Tribunal Constitucional, parecem despontar elementos da política contemporânea que tendem a desafiar a previsibilidade, os prognósticos e os palpites dos atores da arena política tradicional. A intervenção nesse processo de um órgão judicial alarga e complexifica a margem de abordagem jornalística e analítica do processo, na medida em que abre algumas janelas de ineditismo e questionamentos na política cabo-verdiana.
Os cidadãos merecem visualizar, de forma estendida e comparativa, longe das imposições, os pontos de ruptura e de continuidade, introduzidos nessa disputa interna no PAICV pelos seus atores. Essas questões devem ser colocadas e esmiuçadas, numa perspectiva de confronto, entre os candidatos, através de repetidas iniciativas de intermediação jornalística que possibilitem uma maior responsabilização dos próprios, não apenas circunscrita ao espaço intrapartidário, mas sobretudo ancorada ao atual contexto de viragem no plano internacional. Confrontar os posicionamentos dos atores políticos com o contexto global, do qual Cabo Verde é fortemente dependente, e perante fortes incertezas e quebras de status quo.
A nível de comunicação política, o que temos vindo a assistir, de forma dominante, são espaços onde os candidatos expõem as suas propostas diretamente às pessoas, evitando confrontos e intermediação. Emergem ainda os promotores de lives que induzem os seus seguidores ao endeusamento de figuras de sua escolha, criando, assim, algum desequilíbrio no engajamento com as narrativas e as propostas que vão sendo feitas. Não podendo os órgãos de comunicação social afastar-se da sua responsabilidade e centralidade no que tange à intermediação jornalística, justificaria mais debates de qualidade e incursões jornalísticas com ângulos diversos e aprofundados em momentos políticos cruciais como estes, reforçando assim os princípios da imparcialidade, do esclarecimento da opinião pública e da democracia.
Espera-se que a decisão do Tribunal Constitucional de suspender a data de escolha interna do líder do PAICV, que estava agendada para o passado dia 30 de março, dê tempo de qualidade aos jornalistas, rádios e televisõespara promoveremdebates necessários, onde se possa aflorar todas as especificidades desta disputa, que apresenta uma clara disrupção no domínio narrativo e de obediências interna e externa, se comparada à última eleição, tendo como referência a cultura dos partidos entre nós, para além de uma outra e intensa inovação discursiva de base ideológica. Seria interessante para os cidadãos, de uma maneira geral, que essas disputas fossem mostradas na sua exata complexidade e ineditismo, para que houvesse melhor apropriação daquilo que parece ser novo e incompreendido. É desse jeito que construímos todos a história política de um país que almeja ser uma democracia madura, e a imprensa deve ser parte ativa disso, encarando de forma desabrida, e sem receio algum, todos os compartimentos da República.Os contornos da vida de um partido político, numa sociedade fortemente mediatizada e democrática são cada vez mais públicos, e a imprensa deve ser parte integrante desse processo, ativando uma agenda própria e central na intermediação de todos os episódios de interesse público que emergem no seio das organizações partidárias.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1218 de 2 de Abril de 2025.