A Pergunta Indigesta, Digo, (In)Discreta

PorAmílcar Spencer Lopes,13 abr 2025 13:01

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​Ouvi, com agrado, Sua Excelência o Presidente da República dizer, no final da sua recente estada na ilha de São Nicolau, que a visita serviu para dar visibilidade à ilha.

Uma declaração de amor, que embora tardia, é sempre bem-vinda. Afinal, dos seus dirigentes máximos, as populações esperam optimismo e pensamento positivo.

Porém, da boca de quem, enquanto Primeiro Ministro (PM), tudo fez para apoucar a ilha e apagar aquilo que ali estava sendo feito pela Autarquia, há vinte anos atrás, é, deveras, hilariante.

Há vinte anos, eu era Presidente do então Município de São Nicolau. Eleito democraticamente, mediante uma Plataforma Eleitoral escrita e publicada, ou seja, de papel passado, como soe dizer-se, o que, sem bazófia, é uma raridade, pois já ninguém quer apresentar compromissos escritos, para não haver provas objectivas, de promessas não cumpridas.

A convite da autarquia, o então Primeiro Ministro visitou o Município, de 1 a 5 de Abril, de 2005.

Coincidência, que não fica pelos dias e pelo mês. Agora, o acompanhante e guia de Sua Excelência foi alguém que, em 2005, era Vereador a tempo inteiro, com competências específicas delegadas para o território municipal, que, grosso modo, integra, hoje, o Município do Tarrafal, de São Nicolau.

A visita começou com um encontro de trabalho entre as duas delegações, nas acanhadas instalações, onde funcionavam então, os serviços da Câmara Municipal. Isto é, no átrio que dava acesso ao gabinete e secretariado do Presidente da CM e Vereadores.

Como da Praia recebêramos comunicação oficial, em como a delegação governamental integrava catorze membros e o PM apareceu com dezasseis, perante a escassez de lugares na mesa de reunião, o PM mandou sair dois dos seus acompanhantes da Praia, pois fez questão que no encontro de trabalho, estivessem igualmente presentes o Primeiro Secretário do seu Partido na ilha, bem como o Responsável da JPAI.

Isto, numa visita de Estado, em plena democracia, e neste século XXI, muito antes ainda dos maus exemplos da invasão da Ucrânia, pelo novíssimo Czar da Rússia ou da repreensão dada ao Zelensky, na Sala Oval. Mas, já se sabe, Crioulo é precoce!…

Depois de ouvir a nossa pormenorizada exposição, sobre a situação social, económica e cultural da Ilha, dos desafios com que se confrontava o Município, das realizações em curso e das propostas de trabalho, para o mandato, o Chefe do Governo perguntou-nos se tínhamos mais alguma coisa a acrescentar e aos membros da sua delegação se tinham alguma pergunta ou questão a colocar. O Ministro da Economia fez duas perguntas, que aprontamos a responder. Aí, o senhor Primeiro Ministro declarou terminada a reunião e levantou-se, a modos de impaciência, e atarefou-se a sair. Nem uma palavra de agradecimento ou de incentivo, sequer uma observação sobre as informações recolhidas ou o cenário apresentado.

A verdade é que palmilhamos todas as localidades habitadas da ilha e antes do final da visita o PM fez questão de ter um encontro com o que chamou na ocasião de “forças vivas” do Município, acto que aconteceu em horário pós-laboral, na Sala de Leitura da Biblioteca Municipal.

Apesar dos cuidados tomados pelo então Secretário de Estado da Juventude e Desportos, em quem o PM delegara a tarefa de inscrever intervenientes e anotar perguntas, bem como conceder a palavra e controlar o tempo, o debate foi participado e acalorado.

No final do encontro, o senhor PM anunciou, alto e bom som, que assim que chegasse à Praia ia dar ordens para lhe ser preparada uma visita a São Nicolau, porque não precisava de ir à ilha a convite do Presidente da Câmara, por isso que ele era Primeiro Ministro de Cabo Verde, de Santo Antão à Brava.

Como se costuma dizer, na Ilha, ka è mistid pô más nada na carta.

A maior parte das testemunhas dos factos narrados ainda está viva, felizmente, e a memória de pessoas de carácter não é assim tão curta.

Aliás, os pescadores, jovens, operadores económicos e demais integrantes da sociedade sanicolaense estavam lá, como ainda estão hoje outros; a falta de oportunidades, o decréscimo da população e a assimetria regional, também. Naquele tempo, porém, e parafraseando Jorge Barbosa, um caso sem importância nenhuma; ninguém deu por isso; a rádio não falou, os jornais não disseram; apenas o mormaço do olvido e abandono, diríamos nós.

Porque, embora com parcos meios e perante o regateio e obstrução constantes do Governo, um vasto programa de restauração do património construído, de reabilitação de praças e jardins, de conservação e embelezamento de edifícios e espaços públicos, foi então realizado, como provam vestígios que sobreviveram à incúria e mau trato posteriores.

Por outro lado, quem se der ao trabalho de consultar os arquivos, poderá constatar basta correspondência enviada pela Autarquia ao Governo, perguntando por que razão, em matéria de transferência de fundos financeiros para os municípios, o Município de São Nicolau era equiparado ao do Maio e da Brava, quando se sabe que aquela ilha tem mais do dobro de território que as duas últimas e tinha, na altura, cinco vezes mais população que estas. Tais diligências não mereceram, no entanto, resposta alguma das autoridades centrais.

Hoje, com o distanciamento desejável para uma apreciação crítica e construtiva dos factos, não posso deixar de rir, ao ouvir pela rádio e televisão as várias declarações e pronunciamentos produzidos durante a recente visita presidencial à minha querida ilha de São Nicolau.

A propósito, “Saniclau”, minha gente, não é Português, e “sãonicolauense”, como ouvi dizer repetidamente nestes dias, é mau Português; o correcto é sanicolaense. Se temos todos o bom gosto ou a vaidade em dizer que fulano ou sicrano fala ou escreve bem o francês ou o inglês, não sei por que carga de água havemos de tratar mal a língua portuguesa, que é tão nossa, histórica e culturalmente. Só pode ser por complexo de inferioridade colonial.

E, a pergunta que os profissionais de comunicação social que acompanharam, localmente ou à distância, a visita presidencial a São Nicolau, terão esquecido de fazer a Sua Excelência, mas que, enquanto cidadão atento e interessado, não posso deixar de formular, é:

‒ Em que galáxia é que a ilha de São Nicolau terá estado, eventualmente, perdida, durante os quinze anos em que o então Chefe do Governo, agora Chefe de Estado, exerceu o ofício público de governar e administrar o bem comum cabo-verdiano?

Aliás, mesmo durante estes quatro anos de mandato presidencial, a única ilha que tem merecido destaque e visitas frequentes do PR é, honra seja feita, a do Vulcão.

Com os resultados das Eleições Autárquicas de Dezembro do ano transacto, parece que há, agora, espaço e apetência da parte de Sua Excelência, em dar alguma atenção às demais. Ou, pelo menos, visibilidade.

O meu amigo Betú, que entende de coisas do coração, garante, no entanto, que amor di palcu ê fingidu.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1219 de 9 de Abril de 2025.

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Autoria:Amílcar Spencer Lopes,13 abr 2025 13:01

Editado porAndre Amaral  em  13 abr 2025 21:32

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