A Fragilidade do Dólar e os Desafios de um Novo Ciclo Económico Global

PorPaulo Veiga,12 mai 2025 8:03

“Quem controla o dinheiro, governa o mundo.” — Henry Kissinger

O fim da hegemonia do dólar?

Durante décadas, o dólar norte-americano foi o pilar da arquitetura económica internacional, oferecendo uma posição ao dólar como moeda dominante da economia mundial, algo que parecia, à primeira vista, incontestável. A sua posição como moeda de reserva mundial foi consolidada após a Segunda Guerra Mundial, alicerçada na robustez da economia dos Estados Unidos, na estabilidade política e na confiança no seu sistema financeiro. Esta posição concretizou-se desde Bretton Woods, tornando o dólar o eixo central das transacções internacionais, reservas cambiais, contratos de energia e mercados financeiros.

Em momentos de crise global, o dólar funcionava como porto seguro. A maioria dos contratos internacionais, desde petróleo a dívida soberana, era indexada à moeda americana. Para os mercados emergentes, o acesso a dólares determinava a sua capacidade de importação, financiamento e estabilidade cambial.

Contudo, essa narrativa começou a sofrer fissuras. O que antes era previsibilidade transformou-se em oscilação. A moeda americana passou a refletir não apenas os fundamentos económicos, mas também as incertezas políticas internas dos Estados Unidos, desde ciclos de paralisação orçamental até decisões monetárias abruptas e inconsistentes. A confiança, um ativo intangível, mas fundamental, começou a vacilar. À medida que o mundo entra num novo ciclo económico global, essa estabilidade começa a mostrar sinais de erosão.

As novas tarifas impostas pelos EUA a uma vasta gama de produtos chineses, mexicanos e europeus desencadearam uma resposta imediata: retaliações comerciais, aumento do custo de bens essenciais, reorientação de cadeias de produção e, sobretudo, uma crescente desconfiança nos fluxos de comércio global. O resultado foi um abalo na previsibilidade do dólar como moeda neutra, já que as tarifas foram acompanhadas por ameaças de sanções financeiras e limitações ao acesso ao sistema bancário em dólares para países considerados “adversários comerciais”.

“Não se navega o futuro com mapas do passado”

Face a este cenário, muitos países começaram a reforçar a sua preparação para tempos mais instáveis. Um dos movimentos mais visíveis foi o aumento significativo das reservas de ouro por parte dos bancos centrais. Economias como a China, a Turquia e o Brasil aceleraram a compra de ouro como forma de proteção contra choques cambiais e eventuais crises de liquidez em dólares.

Esta procura tem pouco de simbólico: trata-se de uma tentativa clara de ganhar margem de manobra num mundo em que a moeda dominante já não oferece garantias absolutas. O ouro, com a sua história milenar como reserva de valor, reaparece como âncora de segurança perante a desordem cambial iminente. "O ouro é dinheiro. Tudo o resto é crédito." — J.P. Morgan

Paralelamente, a diversificação das reservas cambiais, com maior aposta em euros, ienes e yuans, tornou-se uma prioridade em vários bancos centrais. O objetivo é reduzir a exposição ao dólar sem criar instabilidade nos fluxos financeiros. Trata-se de uma estratégia defensiva, mas reveladora da quebra de confiança acumulada.

Há uma componente interna aos Estados Unidos que explica muito do que se passa com o dólar. A dívida pública americana ultrapassou os 34 biliões de dólares, crescendo a um ritmo superior ao do próprio PIB. É verdade que, paradoxalmente, uma moeda mais fraca favorece as exportações e pode reduzir o valor real da dívida em moeda local. Mas esta vantagem é de curto prazo e arriscada. Se a desvalorização for acelerada e descontrolada, pode gerar um ciclo inflacionário que exija intervenções drásticas do banco central, com impactos imprevisíveis nos mercados globais.

As implicações para países pequenos e abertos

Países como Cabo Verde, cuja economia depende de importações, remessas externas e reservas cambiais denominadas em dólares, este novo ambiente representa uma ameaça real. A dependência do dólar em transacções comerciais, e a instabilidade da moeda norte-americana significa que qualquer desvalorização ou alteração da moeda tem efeitos diretos nos preços internos, nas reservas cambiais e na capacidade de atrair financiamento externo. A incerteza nos mercados financeiros americanos, provocada por políticas protecionistas e pela degradação das relações comerciais internacionais, pode também dificultar o acesso a linhas de crédito e financiamento multilateral, com possível impacto na própria sustentabilidade da dívida pública.

A resposta necessária: vigilância e adaptação

O primeiro passo para uma resposta eficaz é reconhecer que estamos perante uma transição estrutural no sistema monetário internacional. Já não se trata de episódios cíclicos, mas de uma redefinição das fundações.

A resposta a este cenário passa por vigilância estratégica, diversificação de parceiros e fontes de financiamento, e preparação para um futuro em que a hegemonia do dólar possa vir a ser contestada ou condicionada. Cabo Verde, com a sua reputação de estabilidade institucional e diplomática, tem condições para agir com inteligência. Mas não pode ficar à margem.

É essencial reforçar a capacidade do país para lidar com choques cambiais, explorar alternativas digitais para pagamentos internacionais e construir alianças com instituições financeiras que permitam maior flexibilidade. A possibilidade de participar em redes de moedas digitais soberanas, ou de estabelecer acordos com bancos centrais europeus e africanos, deve ser seriamente considerada.

Paralelamente, é fundamental reforçar a capacidade interna de gestão do risco cambial, tanto ao nível das instituições públicas como das empresas privadas, de forma a mitigar os impactos da volatilidade monetária internacional nos orçamentos nacionais e nos custos das importações. A longo prazo, essa resiliência exige ainda um compromisso sério com a educação financeira e com a capacitação técnica dos reguladores, decisores políticos e operadores do mercado. Só assim será possível tomar decisões informadas, construir instrumentos de proteção adequados e defender os interesses do país num ambiente cada vez mais complexo e imprevisível. Talvez nunca como hoje, tenha sido tão fundamental a aposta na literacia financeira e no apoio às pessoas neste domínio.

Uma visão para Cabo Verde: adaptação com ambição

"É forte, entre os cabo-verdianos..., este sentido de um destino comum.” - Carlos Veiga

Cabo Verde sempre foi um país resiliente, marcado pela coragem e pela capacidade de adaptação diante dos desafios. A nossa história de superação é construída sobre a força do nosso povo e nas alianças que conseguimos forjar ao longo dos anos. A relação histórica e estratégica com os Estados Unidos da América, com quem partilhamos valores de liberdade e democracia, sempre foi um pilar importante para o desenvolvimento do nosso país. Esta parceria tem sido essencial para o nosso progresso e para a construção de um futuro mais próspero. A nossa história é, também, um caminho de abertura ao mundo e capacidade de adaptação, e a solidez de uma economia depende da sua capacidade de antecipação e resiliência.

Hoje, mais do que nunca, precisamos de lembrar que, embora o cenário global esteja a mudar, as bases da nossa aliança continuam firmes. A instabilidade dos mercados e a crescente incerteza económica mundial não podem diminuir a nossa confiança em nós mesmos e nas nossas instituições. É tempo de preparar o futuro com inteligência estratégica. Cabo Verde deve continuar a abraçar as oportunidades que surgem, mas sem esquecer a importância das parcerias sólidas, e, sem que isso seja colocado em causa, Cabo Verde deve explorar novas formas de integração nos circuitos digitais de pagamento, procurar acordos de cooperação com bancos centrais de referência, e capacitar as suas instituições para atuar com agilidade perante as transformações em curso.

O futuro de Cabo Verde está nas nossas mãos. Devemos olhar para frente com confiança, inovar em todos os sectores e garantir que nossa economia seja cada vez mais independente e resiliente. O país tem uma oportunidade: posicionar-se como um laboratório de inovação financeira em África, aproveitando a sua estabilidade institucional, a ligação à diáspora e o capital humano jovem e qualificado.

Mais do que reagir à incerteza, é tempo de agir com Visão.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1223 de 07 de Maio de 2025.

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Autoria:Paulo Veiga,12 mai 2025 8:03

Editado porAndre Amaral  em  12 mai 2025 8:03

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