Não devemos isso apenas a uma transição pacífica e de um amadurecimento cívico que culminou no 13 de janeiro de 1991. Não devemos isso exclusivamente à construção de um regime pluralista, baseado em liberdades fundamentais, numa imprensa livre, num sistema judicial independente e num processo eleitoral exemplar. Tudo isso é o corolário de algo que é muito mais profundo e enraizado nas nossas ilhas: a alma cabo-verdiana, uma alma que se fez livre na história, que se fez líder no tempo e que sempre se recusou a subjugar, tornando o nosso povo diferenciado e único.
Essa herança democrática, porém, não é definitiva nem garantida. Ela exige de todos, militantes de todos os partidos, sociedade civil, jornalistas e instituições, uma vigilância crítica permanente. A democracia não é apenas obra dos líderes eleitos, mas fruto da participação ativa e consciente de cada cabo-verdiano que não abdica do direito de discordar, questionar e exigir integridade aos seus representantes.
Assistimos, nos últimos tempos, a sinais preocupantes de práticas políticas que, em vez de fortalecerem a nossa convivência democrática, a fragilizam: ataques pessoais, campanhas de desinformação ou discursos messiânicos que prometem soluções fáceis para problemas complexos. Este tipo de populismo não é novo. Disfarça-se de modernidade, mas traz consigo métodos antigos: o medo, a mentira, a divisão. E não respeita nem as instituições, nem a história, nem o povo.
Num momento em que o mundo inteiro enfrenta desafios democráticos, Cabo Verde não está imune às tentações do autoritarismo ou da intolerância. A experiência de outros países demonstra como regimes populistas podem capturar instituições, silenciar vozes críticas e minar liberdades fundamentais, sempre em nome de uma suposta “vontade popular”. Devemos aprender com esses exemplos para não repetir os mesmos erros. A estabilidade democrática de Cabo Verde é um bem precioso que só se conserva com cidadania ativa e responsável.
Não se trata de condenar partidos, nem de demonizar adversários. Ao contrário, é precisamente no pluralismo de ideias e no respeito pelas diferenças que a democracia se fortalece. Importa, isso sim, denunciar métodos e atitudes que desrespeitam a dignidade do debate público, que manipulam consciências ou que colocam o interesse pessoal acima do coletivo. Militantes, dirigentes e cidadãos têm todos a mesma obrigação moral de rejeitar tais práticas.
Quando a ideologia volta com uniforme novo
Esta ameaça populista disfarçada de messiânica não é exclusiva de Cabo Verde. Olhemos para a Tanzânia. Entre 1977 e 1992, o país viveu sob um regime de partido único, liderado pelo Chama Cha Mapinduzi (CCM), que monopolizava o poder político, os meios de comunicação e as decisões económicas. Com a introdução do multipartidarismo em 1992, apenas um ano após a nossa conquista de liberdade, nasceu a esperança de um novo ciclo democrático. Mas nos últimos anos, assistiu-se a um preocupante retrocesso: jornalistas foram perseguidos, jornais e rádios independentes encerrados, líderes da oposição agredidos ou presos arbitrariamente, e as eleições tornaram-se cada vez mais controladas e opacas.
Organizações internacionais como a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch denunciaram a destruição sistemática das liberdades civis no país:. A liberdade de imprensa, de associação, de manifestação e até de expressão online foram fortemente condicionadas. Leis foram aprovadas para criminalizar a "difamação do governo", restringir reuniões públicas e obrigar ONG's e partidos a obter autorizações quase impossíveis de conseguir. Tudo isto com uma retórica que apela à ordem, à unidade nacional, ao “interesse do povo”, mas que, na prática, restaura o controlo total do poder.
A história da Tanzânia é um alerta claro, o autoritarismo pode adormecer, mas não desaparece, adapta-se, muda de rosto, refina o discurso. Quando regressa, fá-lo sempre em nome da estabilidade, da soberania, da moral, da justiça, e quase sempre com o aplauso inicial de muitos. Só que esse aplauso cedo se transforma em silêncio, medo e censura.
Cabo Verde não é a Tanzânia, mas não está imune aos mesmos riscos. O uso de boatos como arma política, o ataque pessoal como estratégia de comunicação, o revisionismo histórico, ou negação da história. como método de legitimação e a tentativa de silenciar vozes críticas através de campanhas orquestradas nas redes sociais, são sinais claros de que há quem deseje voltar a um tempo em que o poder não se discutia, apenas se obedecia.
Quando a democracia é a última linha de defesa
Não se trata apenas de política. Trata-se da liberdade de pensar, de dizer e de discordar. Trata-se da liberdade de cada jornalista escrever sem medo, de cada jovem protestar sem ser rotulado e de cada cidadão existir fora do enquadramento de um partido. Perder isto é perder tudo. E o mais grave é que, quando se começa a perder, muitas vezes só se dá por isso quando já se perdeu demais.
Pensar que o populismo é exclusivo da extrema-direita e que se preocupa apenas com emigração, xenofobia e racismo é não conhecer a história e a base ideológica por detrás desta tática destruidora. Os falsos Messias, prometendo facilidades impossíveis e aproveitando-se das dificuldades e pobreza de quem os ouve, exploram as suas fraquezas para ganharem um poder que apenas o irá servir a eles. É a ambição de poder que os move, é a implementação de modelo anacrónico e totalitarista que os move, nunca foi, e nunca será o povo.
O populismo promete atalhos, mas conduz ao abismo. Promete limpar o sistema, mas suja a política com mentira, medo e culto da personalidade. Cabo Verde não precisa de salvadores de ocasião nem de vozes inflamadas a prometer o paraíso em passos de magia. Precisa de líderes que respeitem as instituições, de partidos que não troquem princípios por likes, e de cidadãos que saibam que democracia é um trabalho difícil e em constante construção. Políticos devem trabalhar, todos os dias, com o povo, para o povo e a partir do povo. A defesa da democracia não se faz com palavras inflamadas nem com slogans fáceis. Faz-se com instituições sólidas, com lideranças que respeitem a verdade e com cidadãos que não troquem liberdade por promessas vãs. E é por isso que os que acreditam na liberdade não se podem calar agora. A democracia só resiste se for defendida por todos. E, se necessário, reconquistada, palavra por palavra, voto por voto, dia após dia até que todos saibam que a liberdade não se negoceia.
O populismo, por muito sedutor que pareça, nada constrói. Promete atalhos, mas destrói os caminhos. Diz servir o povo, mas serve-se dele. A história tem mostrado que a retórica messiânica e divisiva mina o que de mais valioso temos: a unidade nacional e a dignidade cívica.
Cabo Verde não precisa de falsos redentores, nem de discursos inflamados que acenam com paraísos fáceis à custa das liberdades difíceis. Precisa de líderes que se levantem quando é mais fácil ajoelhar. Precisa de instituições sólidas, onde a verdade pese mais do que a vaidade. Precisa de partidos que não tenham medo da memória nem vergonha da democracia. E precisa, acima de tudo, de um povo vigilante, exigente, informado, que não troque liberdade por promessas, nem dignidade por ruídos. Porque a democracia não se herda, conquista-se. E quando ameaçada, não se lamenta: defende-se. Com palavras, com coragem, com alma, e com um povo inteiro unido em torno da sua história e com as mãos a garantir o seu futuro.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1233 de 16 de Julho de 2025.