A classificação de Cabo Verde pelo Banco Mundial como país de rendimento médio-alto, por um lado, é o reconhecimento do grau de sucesso alcançado, por outro, traz novos desafios e responsabilidades. Percebe-se isso na entrevista de 16 Julho a este jornal do Representante do FMI em Cabo Verde, Rodrigo Garcia-Verdú. Apontou que a retoma económica colocou o país 11% acima do nível pré-pandémico. Acrescentou que a queda de 40 pontos do rácio da dívida pública/PIB do PIB foi espectacular, apesar da dívida de 105% ainda se manter alto.
Também chamou a atenção para os riscos de alguma travagem no crescimento económico que podia pôr em causa esses ganhos, se faltarem investimentos em infraestruturas de suporte a grandes projectos, e para o risco que o sector empresarial do Estado poderá representar para as contas públicas, se houver mau desempenho. Considera ainda que o país tem uma boa gestão ao nível macroeconómico, mas acha que a nível microeconómico poderia ser melhor para atrair investimentos, diversificar a economia e obter ganhos de competitividade e produtividade.
A perspectiva que observadores internacionais e parceiros das organizações multilaterais têm do país é de maior importância em particular para investidores, empresários e turistas. Pode não coincidir por completo com o que internamente sustentam os vários grupos socio-políticos e económicos, o que se compreende. Mesmo com o país a avançar, nem toda a gente está completamente satisfeita com os resultados. De qualquer forma olhares de fora não têm que ser seguidos ou unanimemente aceites, mas podem ser úteis. Além de servirem para projectar uma boa imagem no exterior, também ajudam a calibrar os pontos de vista internos que tendem a ser expressos em muitos casos de acordo com interesses político-partidários estritos.
De facto, é normal que nem todos se revejam no rumo tomado pelo governo ou na velocidade como se está a dar respostas aos problemas. O expectável é que não haja concordância plena com as opções de políticas ou com o ritmo que as reformas estão a desenvolver-se ou com o nível de eficiência e eficácia na alocação e gestão de recursos. Para diferentes segmentos da sociedade as prioridades poderão ser diferentes e as abordagens divergirem com uns a pôr maior enfase na distribuição de recursos e outros a focar essencialmente na necessidade de crescer. As diferentes abordagens não devem, porém, conduzir ao negacionismo, impedindo que se constatem e se avaliem os aspectos bons e menos bons das mudanças realizadas numa governação e os objectivos conseguidos.
Para conciliar todos esses diferentes interesses e ir além das opiniões expressas para decisões que definem uma orientação para o país e o lançam para frente, é fundamental que se faça política, mas num ambiente de democracia, de pluralismo, tolerância e de comprometimento com o bem comum. Nos tempos actuais manter esse ambiente passou a ser cada vez mais difícil considerando que o seu esvaziamento ou distorção tornou-se no grande alvo das forças extremistas nas democracias.
Quer-se com a polarização extrema da sociedade e com discursos antielites interromper o diálogo democrático fazendo a sociedade dividir-se em dois blocos antagónicos, cada um com a sua versão da realidade. Assim, factos deixam de contar, não há busca da verdade e passa-se a ideia de que não há causa ou propósito comum porque o jogo é de soma zero. O que é adicionado a uma parte da sociedade, foi subtraído da outra.
Cabo Verde em período pré-eleitoral para as eleições legislativas de 2026 está perante esse tipo de pressão. Muitas das tácticas usadas por personalidades e forças políticas na comunicação pública e nas relações com as instituições acabam por contribuir para isso. As redes sociais, sem qualquer controlo de conteúdo e pelo contrário sujeitas aos algoritmos das plataformas que tendem a criar bolhas de opiniões similares, têm um efeito amplificador de posições extremas e prestam-se a serem instrumento de bloqueio para o diálogo construtivo e democrático. No momento em que o cidadão comum, a sociedade e o país mais precisam que se debruce sobre os problemas e se incentive debates sobre questões urgentes com profundidade e de forma equilibradas ficam em grande medida privados de o fazer.
Os países como as pessoas e outras entidades complexas, quando crescem e se desenvolvem, deparam-se com novos desafios, vêem problemas antigos não resolvidos a complicarem-se e a se tornarem quase intratáveis e ficam sujeitos a situações que podem configurar armadilhas, potencialmente impeditivas de progresso para um estádio superior de desenvolvimento. Claramente que Cabo Verde encontra-se nesse tipo de encruzilhada que tem de saber ultrapassar para poder progredir. Chegou a este ponto em boa medida porque cresceu, massificou o ensino a todos os níveis de escolaridade, aumentou extraordinariamente a esperança de vida e soube fazer do turismo um motor da economia.
Somam-se os problemas porque ainda o país não acerta em como tornar a agricultura e pecuária e também a pesca mais produtivas, em como encontrar nichos para a indústria e fazer da prestação de serviços a todos os níveis a grande aposta do país. O mercado ainda não está verdadeiramente unificado e as sucessivas soluções para os transportes aéreos e marítimos têm-se mostrado inadequadas e, com o acumular de passivos, mais custosas a implementar. Na saúde não se preparou estrategicamente e em tempo para responder às mudanças demográficas e epidemiológicas da população e às exigências do turismo. Não respondeu no momento certo às migrações internas com políticas de habitação quando a procura de mão-de-obra diminuiu a população em algumas ilhas e aumentou noutras, nem quando, com o aumento da escolaridade, os jovens desertificaram o mundo rural em direcção às cidades, à procura de emprego no sector de serviços.
Não explorou com rapidez necessária e sentido estratégico sectores do futuro como energias renováveis e utilização do digital para unir o país arquipélago de nove ilhas, ultrapassar a cultura centralizadora do Estado e dar aos utentes em todos os pontos do território acesso aos serviços prestados pela administração pública e municipal. É de se imaginar o muito que o país podia ter beneficiado disso para diversificar a economia e diminuir as vulnerabilidades perante choques externos. No mesmo sentido, o espaço que se criaria para uma classe empresarial autóctone com maior conectividade, com aumento de escala do mercado nacional e com ilhas actualmente a perder população, beneficiando de novos influxos.
Estas e outras questões precisam de resposta para que Cabo Verde possa crescer acima do potencial previsto nos próximos anos de 4 a 5%. O debate sobre o estado da Nação amanhã poderia ser um bom começo. No período até às eleições legislativas podia-se dar continuidade a isso com os partidos a apresentar propostas alternativas. Com a tentação para se bloquear o diálogo democrático vai depender da sociedade e de cada cidadão pôr um efectivo travão a essas manobras, não deixando que a cultura dos extremos se imponha. É a prosperidade futura do país na liberdade e democracia que está em causa.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1235 de 30 de Julho de 2025.