É-me impossível falar de São Vicente sem, antes de mais, deixar uma palavra sentida às famílias que perderam entes queridos e àquelas que viram as suas casas, os seus bens e o fruto de uma vida inteira levados pela força das águas. A vossa dor é também a nossa, e a vossa luta diária para recomeçar é um apelo à solidariedade de toda a nação.
A tragédia que assolou São Vicente trouxe dor, destruição e perplexidade. As vidas perdidas, as famílias desalojadas e as infraestruturas destruídas são feridas abertas no coração da nossa nação. Contudo, mais do que um acontecimento isolado, este desastre deve ser entendido como parte de um fenómeno mais amplo: a crescente vulnerabilidade das ilhas perante os impactos das alterações climáticas. Cabo Verde é, infelizmente, um dos exemplos mais evidentes desta realidade, sendo um país que pouco contribuiu para a crise climática global, mas que sofre de forma desproporcional as suas consequências.
As chuvas torrenciais que devastaram São Vicente não são uma fatalidade inesperada. Inserem-se num padrão já reconhecido pela comunidade científica: fenómenos meteorológicos cada vez mais intensos, frequentes e destrutivos em regiões vulneráveis. O que outrora era exceção tende a transformar-se em recorrência, perpetuando um ciclo de fragilidade difícil de quebrar sem uma estratégia nacional de resiliência.
A geografia que nos define é também aquela que nos expõe. Ser arquipélago significa viver entre o mar e o vento, desfrutando de uma natureza singular, mas enfrentando o risco de não possuir um território capaz de absorver grandes choques. Dependemos de recursos externos para energia, alimentação e assistência. As nossas infraestruturas são limitadas e, perante a violência da água e do clima, muitas vezes não resistem. Esta é a dura realidade de Cabo Verde, tão claramente evidenciada por São Vicente.
O sucedido em São Vicente é um alerta, não uma exceção, deixando claro que fenómenos deste tipo serão cada vez mais frequentes e intensos. É imprescindível repensar a forma como planeamos o território, edificamos as cidades e preparamos as comunidades. Ignorar este aviso será perpetuar tragédias idênticas no futuro. Escutar o que a natureza nos diz é, agora, fundamental para transformar o luto em aprendizagem e a vulnerabilidade em verdadeira resiliência.
“O futuro depende do que fazemos no presente.” — Mahatma Gandhi
Esta tragédia é uma página dolorosa da nossa história e um ponto de inflexão que nos obriga a repensar o futuro. Se aceitarmos que as alterações climáticas estão a moldar o nosso presente, a resposta não pode ser apenas reagir às emergências ou reparar danos, mas sim transformar o choque em estratégia, a dor em determinação e a perda num compromisso coletivo.
Perante a devastação, a tendência natural é reconstruir rapidamente, devolver às famílias aquilo que perderam, restaurar a normalidade. Contudo, aqui reside o verdadeiro perigo: se a normalidade era frágil, reconstruí-la exatamente como era é perpetuar a vulnerabilidade. A dor que hoje sentimos deve servir de motor para uma reflexão mais profunda, onde não basta erguer paredes—é essencial edificar resiliência.
Reconstruir é um ato político e ético que ultrapassa o cimento e os tijolos, exigindo habitações seguras, escolas e centros de saúde preparados para fenómenos extremos, integrando ciência, tecnologia e saberes locais no planeamento, e aprendendo com os erros do passado para criar soluções adaptadas à realidade cabo-verdiana.
As lições de São Vicente são claras: comunidades informadas dos riscos respondem melhor, infraestruturas bem planeadas salvam vidas e solidariedade sem coordenação perde impacto. A reconstrução exige capacitação, sistemas de alerta eficazes e uma verdadeira cultura de prevenção que envolva escolas, associações e autoridades. Mais do que levantar muros, é fundamental construir consciência coletiva.
Se quisermos realmente honrar a memória das vítimas, a resposta não pode ser apenas material, mas também estrutural e cultural. Devemos transformar esta tragédia num ponto de viragem, num momento em que a nação decidiu não voltar a ser surpreendida da mesma forma. Reconstruir para o futuro é assumir que cada vida perdida nos ensina a proteger melhor a próxima.
“Nas grandes crises, o coração dos povos revela-se.” — Victor Hugo
A história ensina que tragédias podem ser oportunidades de renovação. Lisboa modernizou-se após o terramoto de 1755, Nova Orleães reinventou-se depois do Katrina, e o Japão fortaleceu suas infraestruturas após o tsunami de 2011.
Cabo Verde também cresceu diante de desafios como secas, fomes, erupções e crises, fortalecendo a resiliência coletiva e mostrando que a sobrevivência depende sobretudo da determinação e da solidariedade.
A diáspora tornou-se fundamental nas respostas às adversidades e a independência demonstrou a capacidade de mobilização do país, enquanto a pandemia destacou a importância da disciplina e da cooperação.
A tragédia de São Vicente insere-se nessa tradição de superação, sendo mais um momento de transformação em que o essencial é decidir o futuro coletivo com base nas lições aprendidas.
As tragédias não nos definem pelo que tiram, mas pelo que despertam. Cabe-nos transformar o sofrimento atual em força para o amanhã.
“No meio do inverno aprendi, afinal, que havia em mim um verão invencível.” — Albert Camus
Cabo Verde depara-se agora com uma escolha semelhante. A reconstrução de São Vicente não deve limitar-se a repor o que se perdeu, mas sim a planear um futuro diferente, com cidades mais bem estruturadas, infraestruturas mais adaptadas e políticas ambientais mais eficazes e ambiciosas. Esta é igualmente uma oportunidade para fortalecer o laço com a diáspora, mobilizando uma solidariedade que vá além do apoio imediato e se traduza em investimento duradouro e estrutural.
O verdadeiro desafio não reside apenas em reparar o presente, mas em preparar o futuro. Num contexto de crescente incerteza climática, cada tragédia representa também um aviso. Honrar a memória e a dor sentidas hoje significa transformá-las em energia para construir um Cabo Verde mais resiliente, mais justo e mais preparado para enfrentar o mundo que está para vir.
É precisamente neste momento que a história nos convoca a estar à altura do legado que herdámos. Ao longo das gerações, demonstrámos uma capacidade notável de resistir, reinventar e vencer as adversidades. Agora, impõe-se a tarefa fundamental de transformar a vulnerabilidade em força, a perda em projeto coletivo, e o sofrimento em determinação renovada. Não se trata apenas de construir muros mais altos, mas de erguer um país mais seguro, mais coeso e mais apto a proteger os seus filhos perante a tempestade.
Se formos capazes de concretizar este propósito, São Vicente não será apenas recordada como palco de uma tragédia, mas sim como o marco de viragem de toda uma nação. Será o momento em que o povo cabo-verdiano enfrentou o futuro com coragem e afirmou: "Nunca mais seremos surpreendidos da mesma forma." Eis o nosso desafio, mas também a nossa oportunidade.
No final das contas, reconstruir São Vicente é reconstruir Cabo Verde. É afirmar que, mesmo perante a adversidade, somos capazes de encontrar um novo rumo. Trata-se de transformar a vulnerabilidade em destino comum e, sobretudo, de acreditar que, das águas que nos ferem, pode surgir o ímpeto para navegar ainda mais longe.
Hoje, mais do que nunca, é essencial que todo o país reme em harmonia, numa só direção. Aos representantes políticos, à sociedade civil, às instituições, às comunidades locais e à diáspora cabo-verdiana espalhada pelo mundo, faço um apelo: que esta tragédia se transforme num compromisso coletivo, capaz de inspirar responsabilidade e ação com visão de futuro. A reconstrução de São Vicente exige liderança firme e uma articulação eficaz entre os decisores políticos e todos os demais setores da sociedade. Porque reconstruir São Vicente é um dever que ultrapassa fronteiras e requer de cada um de nós coragem, união e a convicção de que, juntos, podemos transformar a dor em força e o sofrimento em mudança duradoura.
Reconstruir São Vicente é reconstruir Cabo Verde — juntos, seremos a força que transforma a dor em esperança e constrói um futuro onde nenhum cabo-verdiano fica para trás.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1239 de 27 de Agosto de 2025.