Obituário - Silêncio… Morreu o Maestro Vasco Martins

PorManuel Brito-Semedo,6 dez 2025 11:53

Silêncio. É assim que deve começar a despedida de quem fez da música um modo de estar no mundo. Morreu na madrugada do dia 27 de Novembro, Vasco Martins – maestro, compositor, homem discreto e de inquietação serena.

Cabo Verde perde um dos nomes centrais da sua criação musical contemporânea. A notícia chegou como um murmúrio, atravessando ilhas e redes. Nos dias seguintes, foi o silêncio que falou por todos nós – um silêncio feito de assombro, de respeito e de saudade.

Durante mais de meio século, Vasco construiu uma obra que aproximou o local do universal. A sua música atravessou géneros e gerações, transformando o som das ilhas em linguagem de vanguarda. Foi um dos primeiros músicos cabo-verdianos a escrever sinfonias e a fundir tradição popular com composição erudita. Fez-se caminho sem alarde, movido por curiosidade infinita e serenidade rara, como se tudo quanto criava fosse uma forma de oração.

O músico das ilhas e das estrelas

Nascido em 1956, em Queluz, filho de pai cabo-verdiano e mãe portuguesa, chegou ainda criança a São Vicente. A ilha seria a sua primeira escola. Ouvia o vento, o mar, as vozes e os tambores – e desse exercício de escuta nasceu a sua música. Mindelo, com o seu rumor de porto e o seu coração mestiço, ofereceu-lhe a primeira educação estética.

Autodidacta de génio, estudou com Fernando Lopes-Graça e, mais tarde, no Conservatório Municipal de Noisy-le-Sec, em França, sob a direcção de Henri-Claude Fantapié. Mas o essencial da sua formação vinha das ilhas: da morna e do batuque, das noites de Mindelo, das vozes que atravessavam o Atlântico. Foi aí que aprendeu a transformar o rumor do quotidiano em composição e o silêncio em matéria sonora.

Desde cedo, Vasco entendeu que a música cabo-verdiana podia dialogar com o mundo sem se perder de si própria. Nas suas mãos, a morna tornava-se meditação, o batuque pulsação cósmica. Dizia que a música era “uma viagem para dentro” – e talvez por isso nunca precisou de partir para se sentir universal.

O criador indomável

Vasco Martins recusava fronteiras. Compunha sinfonias, explorava música electrónica, escrevia partituras e poemas. O seu percurso – de Vibrações (1979) a Memórias Atlânticas (2006) e às Sinfonias Atlânticas (2023) – mostra uma busca constante por novas linguagens. Foi um dos raros compositores cabo-verdianos a inscrever-se num diálogo internacional sem perder as raízes.

As suas obras foram apresentadas em Cabo Verde, Portugal e França, integrando projectos de cinema e dança. Trabalhou com artistas plásticos, escritores e coreógrafos, unindo música e imagem, som e palavra. A sua obra espelha um arquipélago em expansão – aberto ao mundo, mas fiel à sua vibração interior.

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Vasco era um criador paciente e disciplinado. Trabalhava em silêncio, alheio às modas e ao ritmo das pressas. Dedicava-se à composição com rigor e entrega, cuidando de cada nota como quem desenha o mapa de um sonho.

O viajante do imaginário

Nos concertos, Vasco parecia sempre em viagem. Tocava com o olhar recolhido e o corpo entregue ao som. Falava pouco, preferindo deixar que a música dissesse o essencial. A sua obra não imitava Cabo Verde: traduzia-o, procurando nele uma medida universal.

Era frequente vê-lo no Monte Verde ou no Calhau a olhar o céu ou o mar. Dizia que aquele horizonte era o seu maior maestro. A paisagem – entre a montanha e o infinito – tornara-se parte da sua música. As ondas marcavam o compasso, o vento soprava os acordes e o silêncio era a sua pauta preferida.

Falava da música como de uma forma de comunhão. “Cada nota é uma semente”, dizia. “E a música é o campo onde o espírito germina”.

Um amigo, um mestre, um silêncio

Com Vasco, a conversa era tranquila e densa. Podia começar num tema musical e acabar num pensamento sobre o tempo ou a fé budista. Dizia: “A música é o que resta quando as palavras se cansam.” Deixava nos encontros culturais uma presença serena – o olhar manso, os gestos comedidos, a escuta inteira. Era um homem simples, com humor contido e curiosidade sem fim.

Numa das visitas à Ribeira do Calhau, era o dia do seu aniversário. Tocou a tarde inteira, improvisando como quem agradece à vida. Ao final do dia, acompanhou os amigos até um miradouro da Praia Grande. Na despedida, deu-nos um abraço e perguntou: “Vocês agora vão-me deixar sozinho?” Rimo-nos. “Mas vives sozinho no Calhau!”, respondi-lhe. Ele sorriu. Hoje, essa frase soa a premonição – a do artista que sabia que a solidão também é parte da criação.

Noutra tarde, num sábado de sol e vento, realizou-se uma sessão do Arco – encontro de convívio e partilha que reunia amigos de longa data: Tchalé Figueira, Germano Almeida, João Vário, António Névoa e Mário Lúcio. Tive o privilégio de participar. O vento forte levou o grupo ao Calhau, onde a casa simples do maestro, rodeada por uma pequena horta, nos acolheu com a serenidade de sempre. Entre o queijo e o vinho, a conversa foi livre, feita de memórias, música e amizade. Vasco tocou sem pressa, como quem oferece o tempo.

O silêncio que fica

Cabo Verde perde um criador ímpar. A sua música traduziu em som a identidade de um povo que aprendeu, entre o mar e o vento, a fazer da escassez uma forma de beleza. Mais do que um compositor, Vasco foi um artesão do espírito – disciplinado, livre, fiel à sua visão. Criava com calma e convicção, distante das modas e das pressas.

Deixa um legado vasto: sinfonias, peças corais e electrónicas, composições para cinema e dança. Foi pioneiro na fusão entre a música erudita e a tradição crioula, transformando o som das ilhas em linguagem de futuro. Viveu entre o Mindelo e o cosmos, fiel à vocação de mestre discreto e viajante do invisível.

Silêncio.

E escutemos.

Ainda é Vasco que toca.

Sinfonia Atlântica https://www.youtube.com/watch?v=Wcq-xbIDzes

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1253 de 03 de Dezembro de 2025.

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Autoria:Manuel Brito-Semedo,6 dez 2025 11:53

Editado porClaudia Sofia Mota  em  10 dez 2025 11:53

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