Paralisia Cerebral: 2014, um ano para acarinhar a esperança

PorSara Almeida,21 jul 2014 0:00

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Não se sabe ao certo quanto são, onde estão, de que precisam. O problema esconde-se muitas vezes entre quatro paredes, longe de uma sociedade que ainda pouco sensível para o enfrentar. Para tentar mudar o paradigma 2014 foi designado o ano da solidariedade para as pessoas com paralisia cerebral de Cabo Verde. Na Acarinhar, organização que tenta dar resposta às necessidades destas pessoas, esta é uma iniciativa que se junta a um largo conjunto de actividades e respostas que têm sido levadas a cabo. Os desafios continuam a ser imensos, tanto a nível individual como social. Mas esta ONG vai tendo já motivos para sorrir e manter a esperança.

 

Maria é o retrato de muitas mães cabo-verdianas. Tinha 20 anos quando engravidou de Cíntia. Vivia com uma tia, que não aprovando o pai da bebé, e muito menos o desenlace do relacionamento –a gravidez – a expulsou de casa. Foi acolhida por “pessoas estranhas”.

Andou muito nervosa durante toda a gestação. Talvez isso explique a doença da sua filha, a quem foi diagnosticada paralisia cerebral. Talvez não. Não se sabe.

 “A paralisia cerebral é uma desordem que ocorre no cérebro nas primeiras etapas da vida, quando o cérebro está ainda imaturo”, explica Teresa Mascarenhas, presidente e fundadora da Acarinhar.

Pode ocorrer durante a gravidez, durante o parto, ou mesmo depois deste. Há várias teorias e diferentes limites de idade para tal poder acontecer. As causas são igualmente variadas.

“Dependendo do tipo e profundidade da lesão e parte do cérebro lesada assim há diferentes tipos de paralisia cerebral. Temos casos de crianças que mal se percebe que têm paralisia cerebral. Mas cerca 75% são os casos mais graves, crianças totalmente dependentes dos outros”, esclarece ainda.

Cíntia, hoje com 24 anos, pertence a estes 75%. Foi logo à nascença que se percebeu que a menina tinha algum problema.

A menina “levou muito tempo para chorar”, recorda a mãe. O médico chegou a afirmar “que se sobrevivesse sofreria de hidrocefalia, mas isso não aconteceu ela ficou normal. O ‘único’ problema é que ela não  consegue se manter de pé, sofre de esclerose lateral amiotrófica.” Além disso, apesar de ouvir, não fala, só faz gestos. A mãe, que tão bem a conhece, é que serve de intérprete desses gestos, que sendo aparentemente pouco coerentes têm na verdade significado e são uma forma de comunicação.

A mãe Maria é, como referido, o retrato de muitas cabo-verdianas, para quem a presença do pai dos filhos não passa de um nome de no papel. Maria apenas conta com ela própria e com a parca ajuda de terceiros para sustentar a família. A vida é dura. O dinheiro é pouco e os custos muitos.

“Ela necessita de leite, papas, fraldas, e muito mais. Também ando doente, sou diabética e isso é muito custoso”.

Vivem dos 4800 escudos da pensão social que Cíntia recebe e do que Maria ganha. A filha, mulher feita mas completamente dependente fica o dia inteiro sozinha em casa enquanto a mãe vai trabalhar e o irmão está na escola, é uma vizinha quem lhe dá o comer à boca. Esse isolamento torna a sua vida mais monótona e em nada ajuda a melhorar a sua comunicação.

“Gostaria que a Cíntia fosse a algum lugar, como por exemplo às aulas, assim ela divertir-se-ia. É uma menina muito esperta que entende tudo, até gosta de estar em outros ambientes mas, infelizmente, fica sempre dentro de casa”, lamenta.

Cada um carrega a sua cruz na vida. A de Maria é Cíntia.

“Peço a Deus que me dê forças. Foi Deus que ma enviou assim, e por isso tenho de lhe dar carinho” e todo o apoio. Por ela faço tudo o que estiver ao meu alcance”, diz, decidida.

Se houvesse outras condições, Cíntia e outros poderiam sair mais e isso seria imensamente positivo, considera esta mãe. Não há hipóteses de sair todos os dias, mas vai frequentando pontualmente a Acarinhar.

 

Acarinhar

A jovem Cíntia mostra bem o seu agrado quando está na Acarinhar, uma ONG com uma intervenção voltada para as crianças e jovens que padecem do mesmo problema. “Ela gosta de estar aqui, se dependesse dela todos os dias estaríamos aqui”, conta a mãe. Mas “só quando há alguma actividade é que ela vem para cá.”

Em Outubro do ano passado, a Acarinhar passou a funcionar no mesmo espaço do Centro de Intervenção Precoce e Reabilitação “Crescer Especial” -  um projecto destinado às crianças e jovens portadores de deficiência, com dificuldades de aprendizagem ou em risco –, numa estratégia de junção de sinergias para resposta às necessidades das crianças.

É aqui que encontramos a sua fundadora e presidente, Teresa Mascarenhas que nos fala desta organização, que veio trazer uma nova dinâmica para muitas crianças e jovens com paralisia cerebral.

Nascida em 2007, a história da Acarinhar começou a desenhar-se anos antes quando a sua fundadora se deparou com a falta de resposta para as crianças com paralisia cerebral, quando trabalhava num centro de reabilitação.

Posteriormente, durante a licenciatura em Fisioterapia, encetou uma investigação sobre a “importância da fisioterapia na reabilitação de crianças com paralisia cerebral” e ao terminar a sua formação tentou colaborar, nessa área, com instituições que trabalhavam com a pequena infância. Nenhuma porta se abriu.

“Diziam: ‘o nosso objectivo é diferente, essa é uma área muito difícil, é uma área da saúde, não temos pessoal, não temos condições físicas para dar reposta’”. O discurso continuou até que uma amiga a desafiou a criar, ela própria, uma organização voltada para a paralisia cerebral.

“Nunca pensei criar uma Organização, nunca foi o meu sonho”, confessa. Porém, avançou. E a Acarinhar foi criada.

Hoje, sete anos volvidos, há muitos desafios e muito trabalho a fazer, mas também motivos de orgulho.

“A Acarinhar tem, inconscientemente, na procura de dar as melhores respostas, dado alguns passos, empíricos. Mas neste momento, fazendo comparação com os dados científicos, estamos no bom caminho e por isso é que estamos a conseguir ter resultados”, congratula-se a presidente.

A reabilitação tem dado resultados e com as 120 crianças com que têm trabalhado, geralmente divididas em pequenos grupos de dança, desporto e afins, têm feito diversas actividades. De colónias de férias, passando pelo desfile de Carnaval na Avenida, campeonato de boccia (um desporto próprio para atletas com paralisia cerebral, introduzida em Cabo Verde pela Acarinhar) e por galas para o público, o leque é variado.

E em termos de sensibilização da população, o segredo parece estar acima de tudo na abordagem.

 “Optamos, em vez de estar a falar sobre paralisia cerebral, por pôr as crianças a fazer: a dançar, a pintar, a tocar violão”. Do dizer ao mostrar, a diferença parece ter surtido um efeito positivo. Contudo, é preciso mais. Os desafios ainda são enormes e esta é uma franja da população ainda muito desprotegida.

 

Quantos são?

Antes do nascimento da Acarinhar, ainda no ano de 2004, Teresa Mascarenhas precisou de reunir alguns dados estatisticos sobre paralisia cerebral, no âmbito da investigação que então levava a cabo. Não conseguiu nenhuns. Pediu então para ver se nos dados não publicados havia alguma informação e descobriu que, em 2000, o total do numero de pessoa com paralisia cerebral, a nível nacional, era de 1500.

Ao certo, ainda não se sabem quantas pessoas com paralisia cerebral há em Cabo Verde e é fundamental “ter esses dados para actuar”.  E é por isso é que a  criação de um Programa de Vigilância e Registo Nacional da paralisia cerebral (ver caixa) se reveste de enorme importância.

“São indivíduos que precisam de respostas por toda a vida, então é preciso programar e, por outro lado, se queremos dar uma resposta adequada, devemos conhecer o diagnóstico da criança, conhecer as crianças, onde estão, como vivem, quais as necessidades”, explica.

Entretanto, a Acarinhar foi já fazendo a sua própria base de dados, com as crianças que conhece, em vários concelhos de Santiago. Aí constam 230 processos. O número, porém, deverá estar muito aquém da realidade. Só na Praia, por exemplo, segundo o Censo de 2000, há “500 crianças com paralisia cerebral, mas a Acarinhar ainda só conseguiu dados de cento e tal crianças na cidade. As outras ainda estão escondidas.”

Gratificante é constatar que quando a ONG faz uma actividade pública, a família vê e traz as crianças para que também possam dançar, jogar boccia ou fazer qualquer outra actividade.

 

Desafios e carências

A maior parte das crianças e jovens com paralisia cerebral permanece todos os dias enclausurada entre as quatro paredes de sua casa, isolada e excluída. Isso deve-se não só à falta de disponibilidade e possibilidades da família para sair com os seus filhos, como à falta de locais próximos da habitação onde possam passar o dia e ainda a um persistente preconceito social em relação às pessoas com deficiência.

Quando Maria sai com a filha, “muitas pessoas olham e ficam a lamentar”. Um sentimento de pena, descrença e algum medo que a diferença sempre causa. “Muitas pessoas que passam por ela chamam-na pelo nome, mas não chegam perto para brincar,” conta a mãe.

“Essas crianças são julgadas como incapazes, diz-se que não raciocinam, não sente, não têm projectos, mas que na verdade essas crianças têm muitas potencialidades”, defende, por seu lado Teresa Mascarenhas.

O desgosto de não ter uma criança dita “normal” acaba por ter um peso enorme na forma como se olha para ela. Não sabendo lidar com a situação, muitas vezes a família entra “em luto, em desespero e não há uma equipa multidisciplinar com psicólogos, com técnicos capacitados, formados para orientar a família, para esta não se centralizar só na deficiência da criança, para poder ver a outra parte da criança.”

“É o que a Acarinhar tem estado a fazer, fazer com que as famílias vejam que aquela criança, antes de ter deficiência, é uma criança. Infelizmente tem algumas limitações, mas essas limitações não a impedem de ser feliz”, diz.

Trata-se de evitar por um lado a superprotecção da criança, e por outro o desleixo e abandono -  a ideia de que esta criança “não aprende, não tem futuro, por isso não vale a pena investir”. No fundo, trata-se de trabalhar as expectativas da família. Um importante desafio.

Outra questão fundamental é a mobilidade, um dos maiores factores dessa exclusão e confinamento.

Cíntia, por exemplo, tem uma cadeira de rodas mas que já está muito velha. De facto, as cadeiras degradam-se rapidamente, devido ao uso diário e constante, e à inadequação do piso onde circulam.

E alguns nem uma cadeira velha têm. “Nem mesmo a Acarinhar tem. Quando queremos sair com as crianças, não conseguimos porque não temos cadeiras suficientes para todos”, conta Teresa Mascarenhas.

As ofertas são muito muito esporádicas, e algumas cadeiras oferecidas há muito que concluíram o seu ciclo de vida pelo que já pouca ou nenhuma utilidade têm.

Ainda em relação à mobilidade, muitas crianças não têm acesso, por exemplo, às sessões de reabilitação proporcionadas no espaço Crescer pois não têm como aí chegar. A distância e a falta de dinheiro para apanhar um táxi são alguns dos motivos. Andar de autocarro ou hiace acaba por ser uma experiência desagradável e difícil e os próprios motoristas queixam-se de ter de transportar cadeiras de rodas e do tempo de “embarque” de uma criança ou jovem nestas condições.

A Acarinhar, apesar de ter uma carrinha própria, tem também dificuldades em mantê-la a funcionar com base diária, pelo que apenas é assegurada quando há actividades pontuais.

“Só para terem uma ideia: a nossa viatura, para recolher um grupo de oito ou seis crianças leva 1h30 de trajecto- entrar de carro, pôr a cadeira de rodas…”, explica.

As carências não se ficam por aqui. Cabo Verde necessita de técnicos capacitados para lidar com este problema. Boa vontade é importante, mas como frisa a presidente da Acarinhar, não basta. É preciso estar capacitado e ter conhecimentos científicos sólidos para saber lidar com as diferentes situações e, de facto, poder ajudar.

Não há respostas suficientes, e os processos de reabilitação são longos, pelo que por vezes as famílias ficam desmotivadas.

Mas nem tudo é negativo. Há, como antes referido e como veremos a seguir, várias conquistas pelo caminho.

 

O caso Daniela

Quando era menina, Teresa Mascarenhas tinha uma criança vizinha com paralisia cerebral.

“Na altura não sabíamos qual era o problema da criança, as pessoas diziam, é doente, é deficiente, ninguém conhecia o diagnóstico. Eu via que era criança diferente, não saia para ver a luz do sol, tudo isso criou em mim a necessidade de fazer algo.”

Actualmente, Teresa está a fazer um mestrado em Comunicação Acessível. No âmbito da sua investigação, o seu estudo de caso é uma menina de dez anos chamada “Daniela”.

A menina, que há poucos anos foi acolhida nas aldeias SOS - apesar da vocação das mesmas não ser o acolhimento de crianças com deficiência - integra um projecto-piloto que está a ser “um sucesso”.

Após um período de três meses de “intervenção constante, séria, humana” o resultado “ultrapassou todas as expectativas”, conta a presidente.

 O trabalho tem sido feito por uma equipa multidisciplinar e inclui reabilitação e apoio pedagógico, mas o mérito é, em grande parte, da própria menina e da sua enorme força de vontade.

“É uma miúda que diariamente está a lutar para contrariar todas as limitações que lhe foram impostas pela paralisia cerebral”.

Com a reabilitação, no espaço Crescer Especial, Daniela já começou a dar os primeiros passos, começou a falar (já domina cerca de 50 vocábulos), reconhece alguns números e cores e nota-se que está feliz.

“Ela chegou em branco. Para nós ela é uma referência e a nossa intenção é que sirva como modelo a nível nacional e depois reproduzir essa experiência que estamos a fazer com ela”, adianta a presidente da ONG.

2014, ano da solidariedade para as pessoas com paralisia cerebral

A ideia surgiu no Natal, quando o Primeiro-ministro participou numa festa com “as nossas crianças”, recorda Teresa Mascarenhas.

Reconhecendo que esta é “uma área difícil, que exige esforço e responsabilidade partilhados”, José Maria Neves declarou que o ano de 2014 seria o ano de solidariedade para com as pessoas com paralisia cerebral de Cabo Verde.

Nesse âmbito, foi estabelecida uma série de acções entre as quais a realização da I conferência internacional sobre a paralisia cerebral, que decorre a 18 e 19 de Julho na Praia. No dia da abertura do evento o governo irá proceder ao lançamento oficial desta campanha.

Antes, no dia 17, e aproveitando a presença dos conferencistas internacionais, a Acarinhar vai realizar três workshops, um dos quais direccionado para o pessoal da saúde, e que irá decorrer no hospital Agostinho Neto.

Dentro desta campanha as acções incluem ainda, por exemplo, a produção de uma campanha de sensibilização, várias acções de formação e ainda produção de dados.

Teresa Mascarenhas, que prefere ainda não se alongar na apresentação da campanha de sensibilização, destaca entre as várias acções, a criação de um Programa de Vigilância e Registo Nacional da paralisia cerebral.

“Com este programa queremos criar uma equipa que irá fazer a cobertura a nível nacional, para fazer um levantamento, para saber a incidência e a prevalência de paralisia cerebral”, em Cabo Verde. E a partir desses dados será possível programar, traçar políticas e realizar as intervenções adequadas.

Este Ano de solidariedade é promovido pelo Ministério da Juventude, pela Acarinhar, pela ADEF (São Vicente), pela Ardepti (São Nicolau), ETC e ACI.

 

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Autoria:Sara Almeida,21 jul 2014 0:00

Editado porRendy Santos  em  21 jul 2014 12:48

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